São Paulo, domingo, 28 de fevereiro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FINO

Como Marcio Ballas deu graça e cor ao palhaço João Grandão

por GUSTAVO FIORATI

A VIDA SECRETA DOS PALHAÇOS

João Grandão é tímido, organiza a vida em tabelas, trabalha na tv e se arrisca por regiões em guerra: "sou só um sujeito sincero"

Se é que ela existe entre palhaços, Marcio Ballas, 38, dá pistas de que vê pela frente alguma... maturidade. Seu segundo filho veio ao mundo neste mês, e os cabelos, de repente, mudaram de castanho claro para um grisalho cinzento. "Foi hoje de manhã que eles ficaram assim", disse, tão logo se sentou à mesa de um café da Vila Madalena, em São Paulo, onde depositou um inesperado chumaço de tabelas em papel A4.
Grampeadas, as folhas montam um calendário impresso em Word, onde ele marca seus compromissos. Marcio usava bermudão, camisa listrada e uma sandália de couro daquelas que os homens costumam aposentar quando completam 12 anos e voltam a usar depois dos 40. A caneta está sempre à mão, o telefone não para.
Além do espírito cômico que o trouxe ao insurgente cenário da "palhaçaria" paulistana dos anos 2000, Marcio é motriz do empreendedorismo que impulsionou um dos mais bem-sucedidos espetáculos de clown da cidade, o "Jogando no Quintal", em cartaz há mais de oito anos, sempre com plateias lotadas. Atualmente, ele comanda também o "É Tudo Improviso", na Band, programa criado para cobrir as férias do "CQC".
O local escolhido para a entrevista –consenso entre nós– era barulhento demais. Migramos, então, a pé, para uma nova sede da trupe do "Jogando". Criado em 2001 no quintal de uma casa em Perdizes, com plateia para 40 pessoas e ingressos a R$ 5, hoje o espetáculo é uma verdadeira máquina de sustentar palhaços, com seu novo galpão na Vila servindo a cursos e ensaios, além de um escritório em Pinheiros. Sob encomenda de empresas, o grupo cobra R$ 14 mil por apresentação.

SEM FRONTEIRAS
Atrás da porta de aço, a primeira coisa que desponta é uma mesa de pingue-pongue. Depois, um salão de assoalho em madeira, onde Marcio estancou brevemente, observando um ventilador em movimento. "Esqueci ligado", disse, inclinando o corpo de 1,88 m que lhe rendeu, nos tempos de estudos na França, o codinome João Grandão. "Achava meio infantil esse nome. Mas, na França, como não falam o ‘ão’, ficou charmoso."
Em Paris, Marcio foi aluno de Jacques Lecoq –figura central de pesquisas sobre improvisação. Também estudou no L’Institut du Clown Relationnel, na Bélgica, com Christian Moffarts, referência pedagógica da linguagem do clown. E participou do grupo Palhaços sem Fronteira, em viagens pela Albânia e por Madagascar.
Esse currículo recheado ele pôs à mesa enquanto jogava um pesado relógio de pulso de uma mão para outra. O objeto foi ao chão oito vezes, durante a entrevista.
Para ele, o clown é um sujeito "excêntrico por natureza". "Quando trabalho figurino, pego algo que não daria coragem de usar normalmente, mas que não é bem roupa de palhaço. No fim, acabo usando essas coisas na rua também."
Entre as peças "esquisitas" de seu guarda-roupa, Marcio guarda um vestido laranja, quatro saias e um camisolão. "Quando uso essas peças, não estou brincando de ser mulher. É uma coisa que você olha e fala: ‘esse cara é esquisito, esse cara é estranho’", define.
A voz de seu personagem, João Grandão, é quase igual à que de fato lhe pertence, um pouco anasalada, como se o nariz vermelho de alguma forma ainda estivesse a lhe apertar as narinas. Mesmo assim, Marcio não se considera a pessoa "mais engraçada do universo", tampouco "o cara mais extrovertido do mundo", ainda que expressões assim exageradas pontuem seu discurso apaixonado por aventuras e andanças .
Dos campos de refugiados da Guerra Civil de Kosovo (1999-2000), na Albânia, traz lembranças especialmente fortes. Entre elas, a de "homens brutos" que, para fazer com que as crianças se sentassem durante o espetáculo, batiam em suas canelas com bambus.

CARAS ESQUISITOS
Os palhaços chegavam aos campos em vans, conta Marcio, e eram recebidos com euforia. Nesses lugares, que ele descreve como imensos descampados cheios de barracas entulhadas de gente e banheiros sujos, não acontecia muita coisa, e um grande tédio pairava entre seus ocupantes. A rotina era quebrada apenas pela chegada de mantimentos e equipes médicas.
"E, de repente, vêm uns caras esquisitos, com monociclos, malabares, trapézio", conta. "O espetáculo de alguma forma já começava ali, quando a gente desembarcava."
Na primeira visita que fez a um desses campos, a afeição das crianças trouxe lágrimas. "Lembro-me dessa cena: a gente fechando a porta da van para ir embora, e os moleques atrás, correndo para dar tchau. Nesse momento, você se dá conta da tristeza. Com o silêncio, comecei a chorar."
Em Madagascar, Marcio se apresentou em "favelões" e numa prisão para menores, "cheia de manos, de olhares enviesados".
Questionado sobre um espectador que tenha lhe marcado a memória, ele volta a falar sobre o Brasil. Foi durante o trabalho com os Doutores da Alegria que conheceu Daiane. A menina, um dia, nas palavras de uma enfermeira do hospital infantil Darcy Vargas, "virou estrela". "Fiquei uns minutos sem entender o que aquilo significava. Ela tinha [pausa longa] câncer, mas ela estava muito bem nas últimas visitas", diz.
Casado com uma artista plástica, Marcio é filho de judeus egípcios que vieram para o Brasil na década de 1950, fugidos do regime político do ditador Gamal Abdel Nasser.
Quando criança, diz, foi tão tímido que teve de ser levado a psicólogos. Descobriu seu amor pelo teatro em um acampamento chamado Nosso Recanto, em Minas Gerais. Na escola, era da turma do fundão.
A fama de "criativo" o levou a cursar propaganda na ESPM. Mas ainda se considera tímido. Detesta quando pedem "vai, faz um clown aí pra gente". Marcio vive de fazer rir até o habitante do mais inóspito recanto. Mas, ironia do destino no mundo dos palhaços, nunca soube contar piadas.

Texto Anterior: CAPA: Roupas, perfumes, cinema, TV: estamos cercados de Sarah Jessica Parker por todo os lados
Próximo Texto: DESENHO: Suzy Lee, um dos nomes mais intrigantes da atual geração de ilustradores
Índice



Clique aqui Para deixar comentários e sugestões Para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É Proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou imPresso, sem autorização escrita da Folhapress.