São Paulo, domingo, 29 de Maio de 2011

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FINO

Corta & Cola

Por Fernanda Ezabella, de Los Angeles

Daniel Rezende, montador de "TROPA DE ELITE" E da EQUIPE de"A ÁRVORE DA VIDA", palma de ouro em cannes, É um sujeito pé no chão e que já dormiu assistindo a filmes do Glauber Rochh

Há pessoas que, pelas razões mais variadas e obscuras, se voltam para o passado e nele se agarram como velhas beatas a seus terços. Outras, ao contrário, miram o futuro com a ansiedade de homens-bomba que sonham com um céu infestado de virgens. Daniel Rezende, 36, o prestigiado montador de "Cidade de Deus", não se encaixa em nenhuma das duas categorias. É um homem do seu tempo, com os pés bem plantados no chão do presente. Nada nesse paulistano morador do bairro de Pinheiros, formado em publicidade pela ESPM e pai de Henrique, 6, sugere nostalgia ou insatisfação desmedidas. É tranquilo, reservado, humilde até. Ao que parece, a indicação de "Cidade de Deus" ao Oscar 2004 não lhe subiu à cabeça. Nem a vitória em Cannes de "A Árvore da Vida" há uma semana. Deram-lhe apenas a confiança necessária para fazer o que quer e sabe.

Scorsese e Kusturica
Almoçamos perto da O2 Filmes, a produtora onde no momento Daniel trabalha em "360", longa de produção inglesa e direção de Fernando Meirelles rodado em vários lugares do mundo e falado em sete línguas, em cujo elenco constam os astros Jude Law, Rachel Weisz e Anthony Hopkins -"e a nossa querida Maria Flor", exclama Daniel, lembrando-se da atriz brasileira. Para quebrar o gelo, tento descobrir o gosto cinematográfico do meu entrevistado, enquanto ele come um escondidinho de carne-seca. Curte cinema italiano, o Neo-realismo, Fellini, Antonioni? Pela sua expressão desmotivada, fica claro que errei a pergunta. Nouvelle Vague, Godard, Truffaut? "Não sou um cara da Nouvelle Vague". Gosta de Glauber Rocha? "Já dormi no meio de alguns filmes dele", responde com sinceridade e então fica sem jeito. Aí para, pensa e constata: "A gente precisa desmistificar as coisas, né?". Pergunto que filme clássico lhe dá vontade de mexer na montagem. "'Metrópolis', do Fritz Lang. É lento demais para os dias de hoje". E acrescenta: "Um filme em que eu não mudaria nada é 'Cidadão Kane'". Um fã de Orson Welles!, me empolgo. "De 'Cidadão Kane'", ele me corrige. Cineastas que aprecia? O americano Martin Scorsese e o sérvio Emir Kusturica. E "Deixa Ela Entrar", de Tomas Alfredson, um filme sueco sobre vampiros, é na sua opinião o melhor longa dos últimos anos.

Cinema é música
"Um filme é uma música de duas horas", define ele, apaixonado por música eletrônica. Cinema é música, mas não só no sentido de algo harmonioso, agradável. Música também pode ser feita de ruídos, de arestas luminosas, explosivas. "Cidade de Deus" tem uma montagem frenética, com ângulos ásperos feito os degraus das escadarias da favela. "Diários de Motocicleta", no entanto, tem um ritmo aberto, generoso -tal qual as planícies da Argentina percorridas pelo jovem Che e seu amigo Granado. "Cada filme pede uma montagem diferente. Não tenho um estilo único. Meu trabalho consiste justamente em descobrir o que cada um exige", diz o montador. No caso de "A Árvore da Vida", o que o diretor Terrence Malick pedia o surpreendeu. "Mostrava para ele algumas opções para a mesma cena e ele sempre escolhia a que parecia mais mal acabada", conta Daniel, que fez parte de uma equipe de montagem com outros quatro profissionais. Duas palavras são fundamentais no seu trabalho: intuição e racionalização. Pois para escolher e sequenciar, da melhor maneira possível, os planos a fim de que formem uma narrativa orgânica e ritmada, de mais ou menos duas horas, que nós, espectadores, chamaremos de filme, é preciso acreditar no que a intuição aponta e organizar o material com as ferramentas que a racionalização oferece -explica ele. Então me conta que montou algo pela primeira vez sozinho -o making of de um comercial com Bruce Willis-, de madrugada, na O2 Filmes (onde era assistente de finalização), depois de passar alguns dias observando o trabalho de outros montadores. O patrão se impressionou com o resultado, lhe propôs novas montagens e, três anos mais tarde, veio o convite para fazer "Cidade de Deus". "Devo ao Fernando [Meirelles] a minha profissão. Ele é o meu mentor."

A volta do país do Agora
Percebendo que o papo não ia durar muito mais, releio as perguntas que preparei em casa e confiro se esqueci algo importante. Ah, sim: TV. "Você assiste novela, seriado?" Mas a última novela que acompanhou foi "Renascer", de 1993, e dos seriados americanos conhece alguma coisa de "House" e "Dexter"."Não acho legal essa ideia de você ter que ficar preso em casa, esperando a novela ou o seriado começar", comenta. "Quer o controle total da própria vida", penso, com admiração e espanto. Saio do restaurante como quem volta de uma viagem ao país do Agora e desembarco atordoado na realidade -que continua sem montagem e é regida pelo mistério.

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