São Paulo, terça-feira, 21 de dezembro de 2004

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leituras cruzadas

Letras na tela


Hitchcock buscava pontos de partida na literatura, enquanto Visconti se inclinava mais por chegadas adequadas aos seus interesses


Em 1972, a extinta revista "Filme Cultura" perguntou a 15 escritores brasileiros o que pensavam das adaptações de suas obras para o cinema. "Más", respondeu laconicamente José Mauro de Vasconcellos. "Foram terríveis. Os diretores demonstraram uma espantosa e calamitosa incompetência", avaliou João Bethencourt. "Não gostei de nenhuma delas. Tenho a impressão de que eu deveria ter feito os diálogos", lamentou Maria Clara Machado. "Quando transpostas para a tela, [minhas peças] me parecem uma caricatura de mim mesmo", sentenciou Nelson Rodrigues. O coro dos descontentes apenas confirmaria a tese, defendida por muitos escritores e cineastas, de que o cinema deveria manter distância da literatura?
Não, a julgar por outros depoimentos recolhidos para a mesma enquete da "Filme Cultura". "Acho meus livros perfeitamente adaptáveis ao cinema, desde que sejam interpretados por diretores capazes", afirmou Clarice Lispector -mais de uma década antes que a cineasta Suzana Amaral fizesse de "A Hora da Estrela" um dos grandes filmes brasileiros dos anos 80. Plínio Marcos dizia ter gostado muito das adaptações de "Navalha na Carne" (por Braz Chediak) e "Nenê Bandalho" (por Emílio Fontana). João Felício dos Santos agradecia a difusão de sua obra, embora considerasse que nenhuma adaptação pudesse satisfazer plenamente "nem ao escritor nem ao roteirista". Hernâni Donato admitia "tranqüilamente" o que chamou de "simplificações" de seus livros para o cinema.
Se uma nova pesquisa com os mesmos objetivos fosse realizada hoje, incluiria um caso incomum, o de "Meu Tio Matou um Cara", com estréia prevista para 31 de dezembro. Seria preciso perguntar ao escritor Jorge Furtado como avalia a adaptação de seu conto feita pelo diretor... Jorge Furtado. No início de novembro, enquanto supervisionava em São Paulo a finalização do filme, o cineasta de "Ilha das Flores" e "O Homem que Copiava" já se divertia com a situação. "Tenho certeza de que o roteiro é muito melhor do que o argumento. A gente [Furtado e Guel Arraes, co-roteirista] melhorou a história e resolveu alguns problemas", disse ao Sinapse.
O comentário aponta para a autonomia do filme diante do texto original, carro-chefe da coletânea "Meu Tio Matou um Cara e Outras Histórias" (L&PM, 105 págs., R$ 20). "Aquilo para mim era um conto, escrevi como um texto para ser lido. Disse ao Guel, que me sugeriu a adaptação: não dá um longa do jeito que está, mas se você trabalhar comigo, pode ser", lembra. Furtado acredita que é difícil esquecer a literatura porque ela é "muito mais importante do que o cinema". Seu currículo reúne um diversificado portfólio de adaptações, desde os curtas "Temporal" (Luis Fernando Verissimo), "O Dia em que Dorival Encarou a Guarda" (Tabajara Ruas) e "Barbosa" (Paulo Perdigão) até as minisséries de TV "Agosto" (Rubem Fonseca) e "Memorial de Maria Moura" (Rachel de Queiroz), passando pelos longas "Benjamin" (Chico Buarque) e "Lisbela e o Prisioneiro" (Osman Lins).
"Melhorar a história" e "resolver alguns problemas", o que Furtado admite ter feito com seu conto para transformá-lo em narrativa audiovisual, é um modo conciso de se referir à arte da adaptação. Entre seus especialistas, destacam-se o inglês Alfred Hitchcock (1899-1980) e o italiano Luchino Visconti (1906-1976). Hitchcock não assinava os roteiros de seus filmes, mas indicava aos roteiristas o caminho das pedras. Sua capacidade de enxergar bons argumentos o levou, em diversas ocasiões, a comprar os direitos de obras de literatura barata para torná-las, mediante processos habilidosos de incorporação de tramas e personagens, matéria-prima de cinema com plena autonomia de linguagem.
Alguém consideraria "literários", no mau sentido do termo, filmes como "Janela Indiscreta" (1954, 112 minutos), "Um Corpo que Cai" (1958, 128 minutos), "Psicose" (1960, 109 minutos) e "Os Pássaros" (1963, 119 minutos)? A abertura de "Janela Indiscreta", baseado em romance de Cornell Woolrich, é um bom exemplo de transposição. "Parte-se do pátio adormecido, depois se desliza para o rosto suado de James Stewart, passa-se para a sua perna engessada, depois para uma mesa onde se vê a máquina fotográfica quebrada e uma pilha de revistas e, na parede, vêem-se fotos de carros de corrida que se desprendem", descreve o cineasta francês François Truffaut (1932-1984) no livro de entrevistas "Hitchcock-Truffaut" (Companhia das Letras, 368 págs., R$ 65). "Nesse único primeiro movimento de câmera, fica-se sabendo onde estamos, quem é o personagem, qual é sua profissão e o que lhe aconteceu."
Hitchcock gostou da lembrança. "É a utilização dos meios oferecidos ao cinema para contar uma história. Isso me interessa mais do que se alguém perguntasse a Stewart: "Como você quebrou a perna?". Stewart responderia: "Eu fazia uma fotografia de uma corrida de automóveis, uma roda soltou-se e veio bater em mim". Essa seria a cena banal", afirma. "Para mim, o pecado capital de um roteirista é, quando se discute uma dificuldade, escamotear o problema dizendo: "Justificaremos isso em uma linha de diálogo". O diálogo deve ser um ruído entre os outros, um ruído que sai da boca dos personagens cujas ações e olhares contam uma história visual", completa o cineasta.
"Um Corpo que Cai" nasceu de uma encomenda que não havia sido solicitada: os escritores franceses Pierre Boileau e Thomas Narcejac escreveram o romance policial "...d'Entre les Morts" pensando em oferecê-lo a Hitchcock, que antes se interessara por outro livro da dupla, "As Diabólicas", cujos direitos já pertenciam ao cineasta francês Henri-Georges Clouzot (1907-1977). A revelação da "surpresa final" do romance, no entanto, foi antecipada para o início da segunda parte do filme -o ponto em que apenas o espectador descobre quem é Judy (Kim Novak), que o ex-detetive Scottie (James Stewart) acabou de conhecer.
"À minha volta, todo mundo era hostil a essa mudança, pois se pensa-va que essa revelação só deveria vir no final do filme", lembra Hitchcock. "Imaginei que eu era um menino sentado nos joelhos da mãe que conta uma história. Quando a mamãe pára de contar, o filho pergunta invariavelmente: "Mamãe, o que acontece depois?". Achei que, na segunda parte do romance de Boileau e Narcejac, quando o sujeito encontra a morena, tudo se passa como se nada acontecesse depois. Com a minha solução, o menino (...) agora pergunta à sua mãe: "E então, James Stewart não sabe disso?" "Não". Eis-nos de volta à nossa alternativa habitual: suspense ou surpresa?"
Sobre "Psicose", Hitchcock é brutalmente franco. "Creio que a única coisa que me agradou [no romance de Robert Bloch, este inspirado em uma notícia de jornal] e me decidiu a fazer o filme foi a subitaneidade do assassinato sob o chuveiro; é completamente inesperado e, por causa disso, fiquei interessado." Foi semelhante o "estalo" que daria origem a "Os Pássaros". "Li a novela (de Daphné du Maurier) e me disse: "Aí está uma coisa que vamos fazer, façamo-la". Não teria rodado o filme se se tivesse tratado de abutres ou de aves de rapina; o que me agradou é que se tratava de pássaros comuns, de pássaros de todos os dias", conta.
Situações, ambientes, personagens, conflitos -Hitchcock buscava na literatura pontos de partida. Visconti, por outro lado, parecia se inclinar mais por pontos de chegada adequados aos seus interesses. Era um intelectual que via oportunidades de diálogo e confluência quando incorporava a seus filmes não apenas literatura, mas também artes plásticas, ópera e música.
Sua leitura do "Risorgimento" (o longo processo de unificação do reino da Itália, no século 19), em "Sedução da Carne" (1954, 115 minutos, R$ 42,90) e "O Leopardo" (1963, 185 minutos, R$ 59,90), mantém a espinha dorsal dos originais em que se basearam os filmes, mas os modifica de acordo com objetivos pontuais, estéticos e políticos.
O primeiro se inspira no conto "Senso, Scartafaccio Segreto della Condessa Livia" (em tradução livre: Senso, diário secreto da condessa Livia), do italiano Camilo Boito (1836-1914), publicado no Brasil em coletânea batizada de "Senso" (Nova Fronteira, esgotado). Na adaptação, ambientada em 1866, quando eclodiu a guerra de libertação do Vêneto contra a Áustria, o romance adúltero e politicamente incorreto entre uma condessa veneziana (Alida Valli) e um tenente austríaco (Farley Granger) espelha um cenário histórico mais conturbado do que no conto (que se passa um pouco antes da eclosão da guerra, em 1865). O roteiro filia-se à tradição da ópera romântica italiana e reproduz a estrutura de um melodrama, incorporando um paralelo com "O Trovador", ópera do italiano Giuseppe Verdi (1813-1901). A "Sinfonia nš 7", do austríaco Anton Bruckner (1824-1896), é outro expediente usado por Visconti para inserir seus "comentários" na trama.
"O Leopardo" é transposição, imbuída de respeito ao original, do romance homônimo do italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957). A edição mais recente em português é "O Gattopardo" (Record, 304 págs., R$ 40,90). O personagem central -inspirado no avô do escritor, príncipe de Lampedusa- é um aristocrata siciliano (Burt Lancaster) que assiste à queda da monarquia dos Bourbon no reino das Duas Sicílias e à sua anexação ao reino da Alta Itália, governado pela dinastia Sabóia, no período de 1860 a 1862. Ainda que usada de modo bem diverso, a frase mais célebre do filme -"As coisas precisam mudar para continuarem as mesmas", dita pelo sobrinho ambicioso do aristocrata (Alain Delon)- veio do livro, bem como um sentimento de nostalgia que custou a Visconti, como já havia custado a Lampedusa, críticas da esquerda.
Outro exemplo da "infidelidade respeitosa" de Visconti é "Noites Brancas" (1957, 107 minutos, R$ 42,90), baseado em conto do russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881). A ação é transferida de São Petersburgo (Rússia), em meados do século 19, para Livorno (Itália), em meados do século 20; as noites de primavera descritas no conto se tornam de inverno; e, apesar disso -ou por causa disso-, o que há de essencial na obra de Dostoiévski permanece vivo no filme de Visconti. "Morte em Veneza" (1971, 130 minutos), que parte da novela homônima do alemão Thomas Mann (1875-1955), publicada pela Nova Fronteira ao lado de "Tonio Kröger" (164 págs., R$ 29), expõe também os procedimentos de adaptação que o orientavam. No livro, a beleza de um rapaz de 14 anos perturba a rotina burguesa de um escritor de meia-idade. O protagonista do filme, entre outras pequenas e significativas variações, torna-se um compositor (Dirk Bogarde) que lembra o austríaco Gustav Mahler (1860-1911), de quem Visconti aproveita, na trilha sonora, as sinfonias nš 3 e 5.
O professor americano Geoffrey Wagner, autor de "The Novel and the Cinema" (O romance e o cinema), usa "Morte em Veneza" para ilustrar a categoria que, segundo ele, mais favorece à autonomia da narrativa audiovisual em adaptações literárias: é a da "analogia", em que os realizadores tornam "seu" o filme, cujas qualidades incluem a riqueza e a originalidade da releitura da matéria-prima, inserindo-a em novo contexto. Wagner pensa que, para o bem do cinema, a categoria a evitar é a da "transposição" -a crença de que a "fidelidade" ao original é alcançada pelo respeito canino (e às vezes obtuso) ao que o romance, o conto ou a peça relatam objetivamente. Entre uma e outra categoria, ele identifica o "comentário": filmes cujos realizadores eliminam ou inserem elementos que atendem a seus interesses criativos, embora respeitem a estrutura dramática do original.
No dossiê realizado pela "Filme Cultura" três décadas atrás, Assis Brasil propõe involuntariamente outra categoria ao elogiar "Vidas Secas" (1964), de Nélson Pereira dos Santos, pela "coincidência de métodos entre a literatura e o cinema".
"O livro [de Graciliano Ramos] foi "montado" de várias histórias escritas para jornais, vindo a idéia de reuni-las mais tarde. Os capítulos são narrativas autônomas, mas ao mesmo tempo formam um todo, com os mesmos personagens em trânsito. Cada um tem um ponto de vista de um personagem, mesmo o "entregue" à cadela Baleia."
A adaptação, segundo ele, respeitou o ponto de vista da técnica literária e, ao mesmo tempo, "não traiu a linguagem cinematográfica". "Nélson simplesmente aboliu a "onisciência" da câmera. Foi a literatura que lhe forneceu o rompimento", analisa. A contribuição de "Meu Tio Matou um Cara" a essa infindável discussão talvez seja a de propor uma categoria rara, a da "coincidência de autor".

Sérgio Rizzo, 39, jornalista e professor, é crítico de cinema do Guia da Folha.


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