São Paulo, terça-feira, 26 de abril de 2005

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Educação

A arte de educar

Daniela Chiaretti
colaboração para a Folha

As escolas brasileiras vêm desenvolvendo um discurso novo na educação artística, muito além daquelas simples atividades de colorir desenhos "sem sair da linha". Hoje, sabe-se que crianças e adolescentes que têm maior contato com as artes não só abrem portas para o conhecimento como aprendem mais facilmente disciplinas tradicionais, uma tese que ganha impulso e respaldo científico. Bem diferente da era do bordado. Não se trata de expor o aluno a espetáculos de música e dança para torná-lo mais sensível à arte. Hoje, o que se procura fortalecer são os elos entre o aprendizado da educação artística e a capacidade de produzir conhecimento e aprender outras disciplinas.
O aprendizado artístico não cabe nos potes de guache. Especialistas desfilam argumentos sobre como o aluno que conhece arte faz mais relações em história e geografia, quem exercita a imaginação com teatro ganha pontos na produção escrita e na leitura, a música ajuda o pensamento matemático e científico. Esses foram alguns pontos levantados em uma pesquisa coordenada pelo professor James Catterall, da Ucla (Universidade da Califórnia, em Los Angeles), sobre o efeito das artes nos estudos. Com uma amostra de 25 mil alunos e 10 anos para ser concluído, o trabalho apontou 84 benefícios da relação entre atividades artísticas e aprendizado.
Estudantes expostos a artes têm notas melhores, mais concentração, criatividade e espírito de colaboração. Há uma grande influência em alunos de baixa renda: 48% dos interessados em música tiveram notas altas em matemática. "Artes devem ter lugar garantido no currículo porque têm relação com praticamente tudo o que queremos dos nossos filhos na escola", diz Catterall. "A idéia de que arte é o lado frívolo de um currículo sério não poderia estar mais longe da verdade."
No Brasil, na última década, museus e centros culturais abriram as portas nessa direção com projetos de "ação educativa" voltados para professores, estudantes e leigos. No ensino público, já se sabe que o Estado faz o que pode -o dado novo é que, quando o Estado não pode, as escolas começam a beber em outras fontes. A rede pública é a grande beneficiada do esforço dos museus.
Na Pinacoteca do Estado, 306 professores fizeram cursos de formação em 2003, número que saltou para 531 em 2004 e que pode chegar a 1.100 neste ano. O crescimento do número de alunos que foram co- nhecer o acervo é espantoso: 9 mil em 2003, mais de 15 mil em 2004, previsão de 29 mil neste ano. O percurso da periferia ao centro já é aventura e aula. "Os meninos vão fazendo a apreciação artística das obras de arte pública, dos outdoors", diz Rosely Cassar Ventrella, da equipe técnica da Cenp (Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo). "Mas só 7% dos alunos da rede nacional vão aos museus. É muito pouco", lamenta.
A dinâmica se repete em todos os centros culturais. Programas de formação de professores informam, ajudam e instigam. No CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), em São Paulo, 861 professores -90% deles da rede pública- fizeram cursos de arte em 2004. Só o Instituto Itaú Cultural distribuiu 6.000 livros do projeto "Crônica na Sala de Aula".
Quem é do tempo do canto orfeônico não tem idéia de que movimento é esse, nem de quem sejam os arte-educadores que estão dentro e fora das escolas, inseridos nas ONGs, fazendo "mediação" nos museus -o jargão para a ponte entre o que está exposto na parede e quem está vendo. "Hoje, os museus são escolas, mas não no sentido convencional, de alunos sentados em fileiras. Quando existe um projeto de ação educativa, a aprendizagem é admirável", diz Celso Antunes, autor de mais de 150 livros didáticos, outros 50 sobre educação -um expert no estudo da teoria das inteligências múltiplas. Mas dar valor ao ensino da arte é escolha da escola. "Nos colégios, o mais habitual é trabalhar arte como informação, e isso qualquer enciclopédia dá. Mas o ensino bem feito leva a pessoa a ser melhor do que era", completa Antunes.
Em algum ponto dessa quebra de paradigmas, museus deixaram de ser vistos como depósitos de velharias. Em uma manhã cinzenta do outono, no bairro paulistano da Vila Mariana, um grupo de 28 crianças está excitado como se fosse a um parque de diversões. Na verdade, os alunos da 2ª série do Colégio Santa Maria, do Jardim Marajoara, aguardam para entrar no auditório do Museu Lasar Segall, em São Paulo. Respondem, afiados, às perguntas feitas por Carolina Vasconcellos Vilas Boas, 25 anos, historiadora com especialização em museologia.
Eles têm 8 anos, mas já reconhecem Vilna (cidade onde nasceu o pintor Lasar Segall, hoje capital da Lituânia) e escutam com interesse a trajetória do artista em Berlim e Dresden. "Esta obra parece uma foto?", pergunta Carolina mostrando um slide expressionista. "Não, tem formas geométricas; parece Picasso", fala um menino entusiasmado. A equipe de educadores do Lasar Segall conhece arte, história da arte e princípios de museologia, além de ter atitude para lidar com o visitante -"falar com crianças não é falar no diminutivo", diz Denise Grinspum, diretora do museu. O professor também faz lição de casa: escolhe o roteiro da visita conforme o que dá em sala de aula, estuda o material sobre as obras e se compromete a preparar os alunos. Ninguém ali está descansando: é uma aula como outra qualquer, só que fora da escola.
Uma coisa é ter contato com a reprodução em sala de aula; outra é ver a obra original, com textura, tamanho, sombras -e os meninos querem sentir logo a diferença. Escutam regras como "na exposição, não pode entrar comendo ou bebendo nem pode colocar a mão nas obras" -lições de cidadania frente ao patrimônio público. Sentam em almofadas diante de "Eternos Caminhantes", o óleo sobre tela que Segall fez em 1919, na Alemanha, e julgou estar perdido durante a escalada nazista, mas que Jenny Klabin Segall resgatou depois da morte do marido. Como em um jogo de adivinhação, as crianças falam sobre o que vêem: expressões, tons, formas. Seguem para o "Navio de Emigrantes" e apontam personagens, tentam adivinhar por que várias pessoas estão debruçadas na mureta do navio. "Ah, estão vomitando", garante uma menina. "Não, estão vendo pássaros", discorda outra. Depois, espiam pela janela o ateliê de Segall e partem inspiradas para a hora de "fazer arte". Apanham pincéis e guache e começam a criar seus próprios navios aos gritos: "Ei, passa o verde".
No dia seguinte, em sala de aula, várias disciplinas se cruzam diante dos meninos do Santa Maria. Os alunos fizeram um texto sobre o que viram na exposição, vão estudar emigração em história e geografia. "Sempre levo aos museus, eles não podem deixar de ver os grandes artistas. Se não for a escola, quem vai levá-los? Os pais não têm tempo", diz a professora de arte Ana Angélica Castilho. "Mudou muito o ensino de arte da época em que estudei. Agora, o aluno vê a obra, tem teoria, relaciona, faz." Bom, também, é que os meninos voltam com os pais. "Quem é esse Lasar Segall? Meu filho só fala nele", costuma es- cutar a diretora do museu, dias depois das visitas escolares.
Entre adultos, a falta de hábito de freqüentar exposições tem raízes na trajetória do ensino da arte no Brasil. Na época do desenho e dos trabalhos manuais, teatro e dança só aconteciam nas festas juninas e de fim de ano. A fase do bordado começa a desaparecer em 1971, com a LDB (Lei de Diretrizes e Bases). A disciplina é incorporada ao currículo e passa a ser "educação artística", mas é uma "atividade" com status quase recreativo. Os conteúdos modernistas privilegiavam a criatividade e a liberdade de expressão -o que foi importante e interessante, mas insuficiente. "Era a época do "deixar fazer" e achavam que um só professor podia dar desenho geométrico, música, tudo. Não funcionou", diz Ana Mae Barbosa (leia mais na pág. 16), uma referência da arte-educação no Brasil. "Os professores davam lápis e papel e pronto."


Pesquisa da Universidade da Califórnia aponta que estudantes expostos a artes têm notas melhores, maior concentração e criatividade


Em 1996, "educação artística" virou "arte" e a edição dos Parâmetros Curriculares Nacionais sugeriu às escolas que lidassem com artes visuais, teatro, música e dança. "A área se profissionalizou. Não dá para dizer que o ensino da arte nas escolas é ótimo, mas é uma meta", diz Heloisa Margarido Salles, formada em teatro pela USP.
Atrás dessa meta, 160 professores da rede pública se inscreveram para as 20 vagas do projeto "Dançando na Escola", da Caleidos Arte e Ensino, entidade paulistana que contou com o patrocínio da Unesco. "Em sala de aula, tem que ter formação para não ensinar só quadrilha e a dança da mídia", diz Isabel Marques, fundadora da Caleidos, com mestrado em dança em Londres e doutorado pela USP. Algumas professoras que fizeram o curso em 2002 estão agora na Caleidos Cia. de Professores.
Foi a imagem entrar em sala de aula e a arte-educação ganhou vigor. Criada por Ana Mae Barbosa, a abordagem triangular -ver arte, contextualizar o que se vê e fazer-, tornou-se a linha mestra no aprendizado. É o que vem sendo aplicado no projeto "Diálogos e Reflexões - Ver e Perceber Arte", do CCBB. Os professores que freqüentam o curso recebem material de apoio, voltam à exposição com os alunos e criam nas oficinas. "Em 2004, encomendamos uma pesquisa para dimensionar o impacto desse projeto", diz Márcia Fleischner, assessora do CCBB. A maioria dos alunos que visitou o CCBB nunca tinha ido a uma exposição, mostra o estudo.
O "Crônica na Sala de Aula", do Itaú Cultural, é um programa de apoio aos professores de literatura, arte e matemática voltado ao ensino médio. O material distribuído tem obras de Machado de Assis, Debret, entre outros. "O estudo da arte fechado dentro da escola pode ser quadrado. Quando sai da sala de aula, ele se amplia", diz Renata.
Tal ampliação pode ser geográfica. "Usei ilustrações na aula, que ficou mais atraente", afirma o professor de arte Edson Farias, da Escola Estadual Armando Fajardo, em Ananindeua, no Pará. Ele e a professora Sandra Teixeira, 32, que dá aula de história na mesma escola, fizeram o curso do Itaú Cultural e agora multiplicam a experiência. "Os alunos ficam entusiasmados quando a gente foge do tradicional", conta Sandra.
É o que acontece com o mineiro Francisco Marques, o Chico dos Bonecos, dono de uma prática bem pouco formal. Em seus cursos para professores, ele usa bonecos e brinquedos que inventa ou resgata da memória popular: "O tema do brincar na educação ganhou peso de uns anos para cá. Os educadores querem saber como a criança aprende".
Ele enxerga o potencial educativo em coisas banais como a "língua do pê". Sua perspectiva é que a brincadeira educa -pode ajudar a ensinar divisão silábica e a reconhecer sílabas tônicas. "O conhecimento passa a ter sentido, a criança aprende, tem mais entusiasmo com a escola", garante. Não é pouca coisa. "Aprender a ler e a escrever exige pouco da criança. Provocar o desejo de aprender é que é difícil."


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