São Paulo, terça-feira, 26 de abril de 2005

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Arte-educação não é espetáculo

O currículo da professora Ana Mae Barbosa enche 40 páginas. Mestrado em Connecticut, doutorado em Boston, pós-graduação na Universidade de Columbia, aulas nas universidades de Ohio, Yale, Birmingham. Dirigiu o MAC (Museu de Arte Contemporânea), da USP (Universidade de São Paulo), foi orientadora de dezenas de teses de mestrado e doutorado, coleciona prêmios nacionais e internacionais, escreveu 17 livros sobre arte e arte-educação. Ana Mae também foi a única latino-americana a presidir a InSea (sigla em inglês da Sociedade Internacional para a Educação por meio da Arte), entidade que reúne especialistas do mundo todo. Atualmente, finaliza mais um livro e prepara, a convite da Unesco, um evento, em Lisboa, que reunirá arte-educadores de várias partes do mundo, em 2006. Conhecida pelas brigas para incluir o ensino da arte nos currículos brasileiros, essa pernambucana faz da ponte entre arte e educação a sua vida.
 

Folha - Antigamente, educação artística era fazer bordado. Como se deu essa mudança para o que é feito hoje nas escolas?
Ana Mae Barbosa -
A primeira mudança foi a do modernismo, entre os anos 40 e 50, com o objetivo de desenvolver a criatividade na criança e no adolescente. A idéia era deixar fazer as coisas, sem cercear, sem dar modelos. Havia uma condenação absoluta a apresentar imagens, pelo medo da cópia. Mas resquícios do desenho geométrico e do bordado continuaram. Assim como o chamado desenho para colorir, que era desastroso em relação às teorias de livre expressão.

Folha - Por que desastroso?
Ana Mae -
Acreditava-se que a criança teria melhor domínio motor para aprender a ler e a escrever colorindo aqueles desenhos mimeografados, o famoso "colorir sem sair da linha". Mas há outras maneiras. Pode-se treinar a motricidade colorindo o que ela mesma desenha ou o desenho do colega. Não tenho tanto pânico desse desenho para colorir quando ele não embota a capacidade de apreensão estética. Há uma experiência interessante de livros para a criança colorir, como o da Carmela Gross, o "Álbum Para Colorir Infantaria". O problema é o xerox do coelhinho, para a Páscoa, ou do soldado, para o Dia do Soldado. Padrão estético ruim acostuma a criança a padrões estéticos ruins.

Folha - Como os educadores passaram a trabalhar com arte, depois do modernismo?
Ana Mae -
O medo da cópia era como ensinar a ler proibindo livros. Isso gerou uma discussão feroz na Inglaterra, nos Estados Unidos. Pesquisas apontaram que a criança que pinta livremente, quando chega à idade adulta, não está preparada para ver uma obra de arte.

Folha - O que aconteceu?
Ana Mae -
A imagem entrou em sala de aula para que a criança aprenda a decodificar. A crença modernista era em uma espécie de virgindade infantil da mente, mas ela não existe mais. Hoje, a criança é bombardeada pela imagem da TV, do outdoor, do computador.

Folha - As imagens da mídia passaram a ser usadas pela escola?
Ana Mae -
Sim. Imagens são cada vez mais presentes no cotidiano e é preciso preparar as pessoas para não as absorverem sem reflexão. Aprende-se muito de arte no cinema. Em um curso nosso para formação de professores, na USP, surgiu uma idéia ótima: mostrar o filme do Batman quando o Coringa entra no museu de Gotham City e manda a turma dele jogar tinta em todas as obras de arte. Mas uma hora ele pára, olha um quadro do Francis Bacon e diz: "Este, não". A pergunta para os professores era: por que o Coringa preservou o Francis Bacon? Foi um modo de vermos o padrão estético de cada um.

Folha - Ter acesso à arte estimula a inteligência das pessoas?
Ana Mae -
Claro, porque a arte opera com fatores mentais envolvidos na inteligência. Existe o desafio de escolher uma forma para construir o que está na imaginação, comparar procedimentos e ver qual é o mais adequado, julgar o que se fez em relação ao que se pretendia fazer. Isso aguça a capacidade individual.

Folha - Hoje, ser criativo é importante?
Ana Mae -
O discurso do modernismo era o discurso da criatividade. Mas ninguém sabia bem o que era isso naquela época. Ser criativo era fazer coisas novas. Por isso, com o tempo, a originalidade passou a ser um critério relativo. Hoje, há outros processos importantes da criatividade, como ter fluência, dar várias soluções para um mesmo problema e desenvolver a capacidade de, dada uma circunstância, reelaborar uma idéia.

Folha - Como esse conceito pode ser usado na vida?
Ana Mae -
Uma pesquisa em Nova York mostrou que jovens infratores de 12, 13 anos, tinham grande dificuldade na capacidade de elaborar. Viviam em ambientes insatisfatórios, mas iam deixando rolar. Não conseguiam reelaborar o mínimo, do próprio quarto a mudar de amigos. Ver e ler a obra de arte, tomar elementos dessa obra e fazer a sua própria, desenvolve no aluno a capacidade de reorganização em qualquer situação.

Folha - Um adulto que tenha apenas colorido "sem sair da linha" pode desenvolver essa capacidade?
Ana Mae -
Existem trabalhos interessantíssimos feitos com a terceira idade. Pessoas que nunca desenharam na vida começam a rever seu mundo, seus objetivos. Nunca é tarde.

Folha - O ensino da arte nas escolas pode ser uma ponte para outras disciplinas?
Ana Mae -
Em arte, não tem certo ou errado, tem o mais adequado, o mais inventivo. A arte nas escolas abre essa porta de interligação, facilita a educação.

Folha - Qual é o efeito no aluno?
Ana Mae -
Um bom professor de arte não é aquele que cobra que a florzinha do papel seja igual a do jardim. A criança ousa, vai se sentindo aprovada e constrói seu ego cultural que estava meio desmanchado. Ela passa a pensar que existe e que não é tão limitada, uma vez que tem um professor que diz que o que ela faz está bom.

Folha - Há nisso um mecanismo de reconstrução social?
Ana Mae -
Não gosto de jogar na arte essa responsabilidade. A arte é um caminho magnífico para a criança se ver e se autovalorizar. Mas tem que dar comida, escola, curso para ela trabalhar no futuro. Tenho muito medo de projetos nos quais parece que a arte vai salvar a criança. A arte, sozinha, não salva ninguém.

Folha - É uma crítica ao trabalho desenvolvido pelas organizações sem fins lucrativos?
Ana Mae -
Não. É possível que existam ONGs aproveitadoras, mas até agora só trabalhei com ONGs positivas, com uma raiz comunitária muito clara. Tenho medo é das fundações com projetos próprios, criadas para suprir a exigência contemporânea de responsabilidade social das empresas, mais preocupadas com um retorno imediato. Às vezes, fazem trabalhos terríveis e o que era educação vira espetáculo. São aqueles shows que acontecem sem que as crianças estejam prontas: elas não estão tocando direito ainda, mas, como são pobrezinhas, a gente vai achar lindo. Isso dá a impressão errada à criança de que é fácil ser artista, e não é.(DC)


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