São Paulo, terça-feira, 29 de março de 2005


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entrevista

Frade dominicano estimula que sociedade debata abertamente alguns dogmas da igreja, como engenharia genética, métodos contraceptivos, homossexualidade e evolucionismo

Entre o céu e a terra

Flávio Ferreira
colaboração para a Folha

Quem vê o teólogo e frade dominicano Carlos Josaphat, 82, trabalhando serenamente entre seus livros e seu computador não imagina como ele é bom de briga. Suas ferramentas de luta sempre foram as idéias e as palavras. Quando ajudou a fundar o jornal "Brasil Urgente", em 1963, já tinha uma história de pregação na qual dizia que o importante não era criar calos nos joelhos de tanto rezar, mas ver a realidade como ela é e ter a religião como inspiradora de atitudes concretas.
A atuação política de Josephat contra a ditadura militar levou-o a ser "convidado" a deixar o país em 1964. No exílio na França, doutorou-se em teologia e lecionou na Universidade de Friburgo (Suíça) por 27 anos. Nesse período, chamou a atenção dos intelectuais europeus por sua visão progressista em relação a temas considerados dogmas pela igreja. Em entrevista ao Sinapse, Josaphat defende, por exemplo, o direito de os casais usarem métodos contraceptivos artificiais. Ao falar sobre a Aids, afirma que os que combatem o uso de preservativos podem "estar cometendo um crime".
Josaphat foi homenageado, em 2002, com o lançamento do livro "Utopia Urgente - Escritos em Homenagem a Frei Carlos Josaphat nos Seus 80 Anos", do qual participaram Antonio Candido, Alfredo Bosi, Dalmo de Abreu Dallari e Plínio de Arruda Sampaio, entre outros. Hoje, além de escrever artigos e livros, ele dá aulas na Escola Dominicana de Teologia e celebra missas na igreja de São Domingos, ambas em São Paulo. Lá é possível ver gente torcendo o nariz quando seus sermões instigam os fiéis a deixar o comodismo de uma religião só de "pais-nossos" e "ave-marias".
 

Sinapse - É possível conciliar razão e fé?
Frei Carlos Josaphat -
O ser humano tem a capacidade de entender e realizar feitos notáveis, mas há muitos problemas que não encontram solução nos simples limites da razão. Por exemplo, hoje, analisamos muito bem o que é a morte física, mas qual é o significado da morte? Há algo para além dela? Essas são questões racionais, mas que não encontram respostas plenas com as informações de que o homem dispõe por meio da ciência ou da filosofia. A fé e a razão podem coexistir muito bem em uma pessoa. Mas, se eu tenho um problema que necessite de uma abordagem racional, não devo recorrer à fé. Se ele está além de verificação e demonstração pela razão, posso e devo buscar um sentido de sabedoria transcendente para essas questões.

Sinapse - As descrições da Bíblia muitas vezes confrontam evidências científicas, como os relatos sobre a criação do Universo e o surgimento do homem. Em que se deve acreditar?
Josaphat -
A intenção da Bíblia não é dar uma resposta sobre o processo de como o Universo ou o homem foram criados. O que ela ensina não está no plano da ciência. Os textos bíblicos têm como objetivo explicar que a vida depende de um princípio de amor e de bondade, e não de um princípio de acaso. Não se deve fazer uma leitura fundamentalista da Bíblia e excluir, por exemplo, a ocorrência de fases de evolução do homem. Acredito que Deus nos criou por meio de um processo evolutivo. Mas a criação não ocorreu por acaso, ela teve um sentido, e é disso que a Bíblia trata.

Sinapse - Como o sr. analisa a opinião de físicos que admitem o papel de uma inteligência superior na criação do Universo?
Josaphat -
Esse é um caminho natural, pois a criação envolve não apenas aspectos científicos mas também valores. Tive a oportunidade de conversar sobre esse tema com o grande psicólogo e cientista Jean Piaget. Ele me disse que não dispunha de uma demonstração empírica da liberdade, valor humano. Mas, como democrata, ele a aceitava e estava convencido dela, apesar de não saber como dar uma prova psicológica da sua existência nem de quando ela surgia nas crianças. Assim, acredito que é preciso haver uma grande tolerância entre a religião, a ciência e outros ramos do conhecimento humano.

Sinapse - Qual a sua opinião sobre a clonagem humana para fins terapêuticos?
Josaphat -
Essa questão merece uma atenção especial, pois envolve a vida humana. Em princípio, a engenharia genética é uma grande porta aberta na linha do bem, mas o investimento científico deve ser no sentido de desenvolvê-la sem provocar uma procriação artificial que seja simplesmente para obter um embrião, manipulá-lo e depois sacrificá-lo. Os cientistas devem tudo fazer para avançar no estudo e na utilização de tudo aquilo que está no começo da vida, como os tecidos do cordão umbilical e da placenta. Mas não se deve instaurar um sistema de interrupção sistemática do processo reprodutivo após a fecundação e a possibilidade de desenvolvimento autônomo de uma vida. É preciso evitar o "aventurismo" científico daqueles que trabalham interessados apenas na experimentação e não respeitam a dignidade da vida humana.

Sinapse - Deve haver educação religiosa nas escolas?
Josaphat -
Sim. A educação religiosa deve priorizar a liberdade. Jamais se deve impor dogmas ou comportamentos às crianças. O caminho é despertar nelas o gosto pela busca do sentido da vida e dos valores humanos. É preciso ajudar para que a própria criança encontre a relação desses valores com uma experiência religiosa que seja positiva, e não uma experiência de culpabilização, de pecado, de pavor do julgamento de Deus.

Sinapse - O que o sr. pensa sobre a utilização de métodos contraceptivos artificiais, um dos dogmas da igreja?
Josaphat -
Essa questão envolve vários aspectos. Um deles é o dos casais que querem planejar a vida da família. A igreja diz que eles só devem usar métodos naturais de contracepção. Acredito que o homem e a mulher, com uma correta orientação médica, devem escolher o método, natural ou artificial, que mais lhes convém. A posição deles deve ser respeitada pelos padres. Método é meio, e o meio é empregado da maneira mais ajustada aos bons fins que se deseja alcançar. Em relação à Aids, a questão é evitar o contágio. Se a pessoa optou pela promiscuidade, pelo menos deve empregar o preservativo, para não cometer duas faltas: ter vida promíscua e espalhar um mal grave. Quem diz que não se deve usar preservativos pode estar cometendo um crime, pois pode fazer com que ocorra a contaminação de muitas pessoas.

Sinapse - Como a igreja deve lidar com a homossexualidade?
Josaphat -
Tenho refletido muito sobre esse assunto. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que há vários tipos de homossexualidade -cada um merece uma abordagem particular. É uma questão muito séria porque a pessoa deve encontrar sua identidade. O homossexual deve ser respeitado e levado a pensar sobre que tipo de sexualidade realiza e de onde vem a sua orientação. É preciso acabar com a intolerância e o nervosismo quando se fala de homossexualidade. Mas também não deve haver uma corrente de incentivo à homossexualidade, pois há muitas pessoas que são influenciáveis e podem aderir à relação com um parceiro do mesmo sexo quando encontrariam um caminho melhor na heterossexualidade.

Sinapse - Como o sr. lida com a imposição de dogmas?
Josaphat -
Quando o cristianismo surgiu, a pregação era no sentido das bem-aventuranças, de tudo aquilo que poderia levar o homem à felicidade. Com o advento das rupturas na religião, foi necessário elaborar os dogmas para confrontar os discursos em desacordo com a mensagem cristã. Mas aí houve uma atitude equívoca da religião, de dar mais valor aos dogmas do que à orientação evangélica de viver a verdade. A igreja chegou a uma atitude de quase intolerância. Quando ocorreu o Concílio Vaticano 2º (1962-1965), insistiu-se sobre a necessidade de levar em conta a "hierarquia das verdades". O que nos une como cristãos é mais importante do que o que nos separa. Hoje se vive uma nova fase, com o ecumenismo ganhando espaço. A maior parte dos cristãos está convencida de que é preciso trabalhar junto com as outras religiões no caminho das verdades que nos levem a viver melhor.

Sinapse - As religiões devem abordar temas políticos?
Josaphat -
Sim, as religiões devem promover nos fiéis a consciência de que eles têm a responsabilidade de construir uma sociedade mais justa. Isso deve ser pregado. É preciso discutir uma ética que não seja apenas individual ou de relações com as pessoas mais próximas. Mas as religiões não devem tomar posições partidárias nem indicar as formas concretas de realização da justiça social. Devem levar os fiéis a procurar uma maneira inteligente de atuação. Não podemos esquecer que muitas questões sociais envolvem assuntos técnicos, como a economia. Não é com o sentimento religioso que se vai resolver esses problemas.

Sinapse - Como o sr. analisa o pluralismo religioso no Brasil?
Josaphat -
Hoje, há uma crise das religiões. Parte delas se aproveita da necessidade e do sufoco do povo e inventa processos de terapia que competiriam à psicologia ou à medicina, dando uma falsa confiança de que a religião vai resolver os problemas de saúde, de emprego ou aqueles que são puramente técnicos. Outra parte emprega o sentimentalismo, que torna a religião algo quase teatral, e cria um discurso somente para dar consolo aos seus seguidores. Diante desse pluralismo, as pessoas têm de ter discernimento para ver o que é manipulação e exploração do sentimento religioso e procurar uma religião de melhor qualidade. O mundo de hoje é um convite para que as pessoas tenham uma religião que seja de convicção, de responsabilidade e solidariedade com as questões humanas. É preciso fazer desse problema um desafio para se chegar a uma religião de melhor qualidade.


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