São Paulo, terça-feira, 30 de agosto de 2005

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Caminho das pedras

Efêmeras e críticas, intervenções urbanas como a Cow Parade, que chega a São Paulo no começo de setembro, ganham status de arte e destaque em canteiros, muros, postes e calçadas de vários países

Cidades sitiadas

Maria Angélica Melendi
colaboração para a Folha

Em uma tarde, num canteiro abandonado de uma avenida de Belo Horizonte, abrem-se centenas de flores vermelhas de papel celofane. No centro de Buenos Aires, os passantes são surpreendidos por uma invasão de soldadinhos de brinquedo descendo de pára-quedas dos prédios mais altos. Esses trabalhos, do Grupo Poro e do Grupo de Arte Callejero, respectivamente, estão entre os muitos que acontecem todos os dias nas ruas de nossas cidades.
Agrupadas sob o rótulo de intervenções urbanas, essas práticas são diversificadas. Suas marcas distintivas são, além da localização urbana, a debilitação ou o questionamento da autoria, a opção pela efemeridade e pela impermanência e a crítica à situação socioeconômica ou ao sistema de artes instituído.
Os protestos antiglobalização ocorridos em Seattle (1999) e Gênova (2001), os movimentos contra a guerra no Iraque ou os realizados em diversos países por conflitos locais -como foi o caso Fujimori, no Peru, ou da crise de 2001, na Argentina- apontam para uma sintonia com os acontecimentos políticos e sociais que provocaram estratégias similares na segunda metade do século 20.
Vale lembrar dos cartazes e grafites nas ruas e muros da Paris de maio de 68 -e também de Buenos Aires, Rio de Janeiro, Cidade do México, Nova York, Milão ou Berlim. Naquela época, em qualquer metrópole, artistas e jovens saiam às ruas e nelas inscreviam seus trabalhos e suas palavras. Essas manifestações receberam nomes como "nothings", "happenings", "event scores", ações, performances, entre outros.
A Cow Parade, que estará em São Paulo a partir do mês que vem, é um evento internacional que surgiu na Suíça em 1998. As vaquinhas, de tamanho natural, são feitas de fibra de vidro e funcionam como telas para os artistas selecionados nas cidades onde a parada se instala. O circuito é urbano, porém acontece sempre nos lugares mais nobres, como é o caso da avenida Paulista, em São Paulo, e do Puerto Madero, em Buenos Aires. Sua função é apenas a de entreter e divertir certo público de classe média, além de legitimar a obra dos selecionados. O circuito (www.cowparade.com) produz vários subprodutos colecionáveis. Pouco ou nada tem a ver com as obras das quais falamos, que se caracterizam pela porosidade dos limites e pela dificuldade em serem percebidas e julgadas a partir de princípios estéticos, políticos ou didáticos.


No centro de Buenos Aires, os passantes são surpreendidos por uma invasão de soldadinhos de brinquedo descendo de pára-quedas dos prédios mais altos


É bom lembrar que, em 1981, Marcelo Nistche foi premiado no 12º Salão Nacional de Arte de Belo Horizonte com uma intervenção urbana intitulada "Vaca de Concreto", que consistiu na instalação de uma escultura de concreto do animal, em tamanho natural, no passeio da rua Leopodina, em Belo Horizonte, onde a peça permanece até hoje (confira em www.comartevirtual.com.br). No começo dos anos 90, um grupo de jovens ligados ao fanzine "O Marmota" organizou intervenções periódicas na "vaquinha" de Nistche. Pintada por alguns integrantes do grupo, a escultura era reinaugurada a cada mês, ocasião em que os artistas faziam festas na rua.
O que hoje chamamos de intervenção urbana envolve um pouco da intensa energia comunitária que floresceu nos anos de chumbo. Os trabalhos dos artistas contemporâneos, porém, buscam uma religação afetiva com os espaços degradados ou abandonados da cidade, com o que foi expulso, apagado ou esquecido na afirmação dos novos centros. Por meio do uso de práticas que se confundem com as da sinalização urbana, da publicidade popular, dos movimentos de massa ou das tarefas cotidianas, esses artistas pretendem abrir na paisagem pequenas trilhas que permitam escoar e dissolver o insuportável peso de um presente cada vez mais opaco, cada vez mais complexo.

Maria Angélica Melendi , 60, nasceu em Buenos Aires, vive e trabalha no Brasil desde 1975, é professora adjunta do Departamento de Artes Plásticas da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisadora do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Hoje, Maria Angélica estuda as artes visuais em relação com o cenário político da América Latina, com ênfase às estratégias de memória e identidade, assunto sobre o qual publicou artigos em livros, periódicos e revistas acadêmicas.


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