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Depoimento

'Da janela da nossa casa, podíamos ver o mundo'

Repórter especial da Folha relembra a sua infância em Olinda

FREDERICO VASCONCELOS
DE SÃO PAULO

VIVI NUMA CIDADE SEM VIOLÊNCIA. AS CASAS NÃO TINHAM GRADES. NÃO HAVIA CHAVES NA NOSSA. OLINDA ERA UMA CIDADE- DORMITÓRIO

Na Olinda da minha infância, o "Homem da Meia-Noite", boneco do Carnaval, ainda era um gigante solitário.

Quando o bloco passava na nossa rua, o galã de cartola, costeletas, bigodinho e dente de ouro cumprimentava meu pai. Retribuíamos a reverência oferecendo um refrigerante para o carregador. Como o boneco era muito alto, ele tinha que abrir a braguilha do personagem para beber o guaraná.

Da janela da nossa casa, ao lado da matriz de São Pedro, víamos o mundo. Passavam procissões, blocos, leiteiro, verdureiro, amolador de tesouras. E o "galego", que oferecia revistas pornográficas e cartas de mágicas.

Aos domingos, mascates vendiam tecidos. Depois da missa, o franciscano vinha tomar sorvete conosco.

Todo mundo conhecia todo mundo.

O tocador de tarol seguia as procissões, as marchas carnavalescas, o pastoril e a retreta dominical na praça do Carmo. Nos outros dias, empurrava a carreta da funerária.

Da janela da nossa casa, camarote privilegiado, assistíamos à Corrida das Ladeiras, maratona mais difícil que a São Silvestre. Dizia-se que a ladeira da Misericórdia, mais íngreme, ajudava a tornear as pernas das alunas da Academia Santa Gertrudes.

À noite, um funcionário acendia a lâmpada de cada poste. As famílias colocavam cadeiras na calçada. Quando compramos a primeira televisão, meu pai abria as janelas para que os vizinhos assistissem a programação.

Nossa casa ficava entre os dois cinemas da cidade. Na Semana Santa, como havia uma única cópia da "Paixão de Cristo", garotos passavam correndo com os rolos dos filmes para a exibição intercalada nas duas salas.

O ano acabava com a festa na rua do Bonfim, com quermesse, grupos folclóricos e cinema projetado na parede de um casarão por um vizinho.

No dia em que Getúlio Vargas se suicidou, o único guarda da delegacia circulou na rua com um fuzil. Prontidão inócua. Havia um único assaltante, que não assustava ninguém. Vivi numa cidade sem violência. As casas não tinham grades. Não havia chaves na nossa. Olinda era uma cidade-dormitório.

Depois vieram os intelectuais, os arquitetos, os ateliês, as pousadas, o artesanato e os turistas.

Subi e desci as ladeiras a pé, em carrinhos de rolimã, de bicicleta e na cabina do caminhão do lixo da prefeitura, dirigido por um parente distante. Ainda havia bonde, quando comecei a trabalhar.

Ia todo dia à praia, até que ergueram os diques para conter a fúria do mar, que levara a casa da primeira infância.

Ao chegar a São Paulo, no final dos anos 1960, imaginava que veria o mar ao dobrar cada esquina.

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