São Paulo, segunda, 2 de fevereiro de 1998

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OLHA O TREM
Apesar de retratado em telas de Portinari, Tarsila, Monet e Manet, tema foi pouco "viajado" pelos pintores
Comboios precisam de uma pintura nova

FEDERICO MENGOZZI
especial para a Folha

Meios de locomoção? Para desgosto daquele ex-presidente "exilado" em Miami, os artistas não costumam ir além da carroça.
Ou recuam mais ainda e chegam ao cavalo, um dos principais temas da história da arte, a ponto de gerar uma categoria própria, o retrato equestre. Muitas vezes, observa-se, quem está em cima da montaria também pertence ao gênero Equus.
Automóveis e aviões, apesar da participação crescente na vida contemporânea, são veículos que os artistas retratam com parcimônia. Com o trem, meio de transporte revolucionário que reduziu as distâncias e integrou pessoas e regiões, acontece o mesmo.
E pode-se perguntar: que artista, desde sua invenção no século passado, nunca andou de trem?
Na arte brasileira, os trens surgem aqui e ali. Quase sempre ajudam a compor o horizonte - é a maria-fumaça que arremata, lá no fundo, a paisagem. Como em "O Lavrador de Café" (1939, Museu de Arte de São Paulo), de Cândido Portinari, no qual um trem se funde, diagonalmente, à plantação. É um elemento que dá movimento à cena, protagonizada por um vigoroso trabalhador rural.
Como Portinari, nascido numa região cafeeira, a filha de fazendeiros de café Tarsila do Amaral viveu na esfera das ferrovias.
Em telas como "E.F.C.B." (1924, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo) e "A Gare" (1925, coleção de Rubens Schahin, SP), ela eleva o trem e seu universo a tema principal. São composições com as cores caipiras de que tanto gostava.
Diferenças
Mas Tarsila não ficou em composições meramente estetizantes. Em "2ª Classe" (1933, coleção de Fanny Feffer, SP), de sua fase mais social, quando regressou de uma visita à União Soviética, ela retrata os passageiros desesperançados dos vagões populares - o título do quadro se refere tanto ao vagão quanto às pessoas, ambos de segunda classe.
Coincidência ou não, a artista fazia uma leitura brasileira de "Interior de Vagão de Terceira Classe" (1864, National Gallery of Canada, Ottawa), de Honoré Daumier.
Pouco antes de "2ª Classe", Tarsila pintara "Operários", considerada a primeira tela de teor social do Brasil. Em sua tela, como na de Daumier, o trem era um veículo que acentuava as diferenças.
Na obra de Glauco Pinto de Moraes, o trem não foi um elemento circunstancial, mas sua razão de ser. Em cores quentes, com precisão fotográfica, esse gaúcho de Passo Fundo resgatou os trens de sua infância, como as locomotivas Mallet, fabricadas na França. Moraes começou pintando o trem inteiro e foi descendo a particulares que mais pareciam abstrações.
No exterior
A primeira ferrovia pública foi inaugurada em 1825, ligando as cidades de Stockton e Darlington, na Inglaterra.
Talvez pelo espírito romântico dos artistas, avessos -futuristas à parte- à tecnologia, o tema não entusiasmou.
Houve exceções. William Turner, em "Chuva, Vapor, Velocidade" (1844, National Gallery, Londres), foi um dos primeiros artistas a pintar um trem.
Em 1877, quando Claude Monet expôs os quadros da série "Gare Saint-Lazare" (Musée d'Orsay, Paris), sobre a estação parisiense, toda enfumaçada, o tema ainda era considerado indigno de um pintor. Pouco antes, Édouard Manet exibira "A Estrada de Ferro" (1873, National Gallery, Washington), mas não mostrava o trem, somente a fumaça que gerava.
Sonho e dinâmica
Por motivos diversos, futuristas, metafísicos e surrealistas "tomaram" o trem. Os futuristas, como Umberto Boccioni em "Estados de Espírito, 1º, Os Adeuses" (1911, Museum of Modern Art, Nova York), procuravam a dinâmica do veículo.
Mas os metafísicos e surrealistas queriam o oposto, uma abertura para o sonho por meio da atmosfera das estações centrais e dos trens em trânsito.
Nas telas metafísicas de Giorgio De Chirico, como "O Enigma de um Dia" (1914, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo), trens fumegantes cruzam paisagens desertas.
E nas telas surrealistas de Paul Delvaux, como "O Cortejo" (1963, localização desconhecida), trens soturnos contribuem para criar um clima irreal.
Se Monet nascesse hoje, constataria que o trem, apesar de sua inegável importância, continua a ser um tema pouco "viajado". Por quê? Quem é que sabe...



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