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São Paulo, segunda-feira, 02 de junho de 2003

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FERNANDO GABEIRA

As narrativas da violência na cidade

A diversidade dos crimes que acontecem hoje no Brasil é um desafio para os repórteres policiais e, quem sabe, pode até abrir uma janela de inspiração para os escritores do gênero.
Num só dia, um empresário matou a mulher e as duas filhas e suicidou-se numa cobertura da Barra da Tijuca e um adolescente em Palmas suicidou-se injetando anabolizantes e tomando vitaminas usadas em animais. Na véspera, Almir Chediak era assassinado em Petrópolis por um assaltante, caseiro da região.
Há toda uma discussão sobre o crime organizado. Além disso, há uma intensidade dramática tal no noticiário que, certamente, inspirou a seleção brasileira de nado sincronizado a protestar contra a violência em sua coreografia.
Como um programa que se repete, vemos a história de uma estudante da Estácio de Sá no Rio ferida na cabeça, numa cena filmada pelas câmaras de segurança interna. Rapidamente, o crime filmado, apagado, recomposto e exibido muitas vezes, deslocou a realidade com sucessivas simulações. Talvez se esteja trabalhando com o lado espetacular da sucessão de crimes, porque eles vão acontecendo num ritmo rápido. Ajudaria bastante se os repórteres policiais tivessem tempo para tentar explicar o porquê. Por que um adolescente injeta asteróide no próprio braço e no braço da prima? Não se trata de alcançar a verdade, mas de, pelo menos, sair um instante do caleidoscópio e mergulhar num caso.
Se, no futuro, um historiador quisesse interpretar esse momento das grandes cidades brasileiras, precisaria de mais do que uma sucessão de flashes. Ele precisaria de nossas tentativas de entender, por mais imperfeitas que fossem.
Os motins têm se repetido quase semanalmente nas cadeias brasileiras. No entanto quase não se debate mais a crise do sistema penitenciário. Os motins foram incorporados à paisagem dos jornais noturnos.
Muita gente não se interroga, porque pensa: "Aquilo é um mundo de criminosos, um inferno que eles mesmos criam". Mesmo esses que pensam assim se esquecem dos que trabalham lá, não param para imaginar o que é ser guarda penitenciário nesse momento da história dos presídios brasileiros.
Dessas vertentes, crime organizado, assaltos e assassinatos, crise no sistema penitenciário e corrupção na polícia, é possível buscar uma explicação para o que está acontecendo nas metrópoles brasileiras. Não se trata de tese nem de visões globalizantes. Apenas de uma entrada para os pesquisadores do futuro. Uma das muitas.
Quando falamos de cidades sustentáveis, estamos sempre nos referindo à água, à energia e a resíduos sólidos. O conceito de sustentabilidade não pode ser apenas ecológico. A violência é um dado de insustentabilidade. É possível medir suas repercussões na economia e em, certos casos, até em mudanças populacionais
Na esfera política, a energia é dividida entre cuidar dos grandes passos econômicos e atenuar a violência urbana. Não há nela interesse em se aprofundar em casos reais, mas, sim, em buscar fórmulas mais abstratas, válidas para todo o país.
Tragédias familiares, ataques do crime organizado, garotos de classe média arrebentando o joelho de um ministro com uma marreta, tudo passa rápido. Esse ritmo hipnotiza. Cada um à sua maneira. Seria preciso explicar o que está se passando, deter um pouco esse processo, nem que seja apenas no plano imaginário, avaliando os casos como se fossem únicos. Com o tempo, vamos recosturar o nexo.



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