São Paulo, quinta-feira, 04 de outubro de 2007

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DELÍRIO DE PEDRO

Hiperbólico, acervo pede tour de 11 anos

Tempo supõe que visitante contemplaria por um minuto cada uma das 3 milhões de obras do Hermitage

Tuca Vieira/Folha Imagem
Praça do Palácio e palácio de Inverno, onde fica o museu Hermitage


RUBENS VALENTE
EM SÃO PETERSBURGO

A guia e intérprete russa Natalia Startseva, 23, uma fã de Machado de Assis que adora o Rio de Janeiro, costuma atender ao pedido para que a vastidão do museu Hermitage seja conhecida em duas horas.
Esse é o tempo médio que as hordas de turistas levam -alguns verdadeiramente correndo- para apreciar apenas as obras-primas do acervo. Para Natalia, especialista em arte e guia credenciada pelo Estado russo para trabalhar no museu, isso soa como uma heresia.
Uma das glórias do país, patrimônio arquitetônico e artístico mundial, o museu de São Petersburgo (ex-Leningrado), um dos maiores do mundo, requer tempo e disposição para ser desbravado. Além disso, paciência para entender a falha organização das salas e, se possível, o socorro de um intérprete, já que boa parte das placas identificadoras das obras está apenas em alfabeto cirílico.
Para o turista interessado em arte, dois dias de visita, ou 14 horas, ainda são insuficientes para a contemplação das centenas de destaques desse que é o maior rival do Louvre, em Paris, em grandeza física e exuberância artística. São 1.057 salas e 117 escadarias.
"Por aqui dizemos que se um visitante gastasse um minuto para olhar cada item exposto, levaria 11 anos", diverte-se Lana, funcionária do museu.

FHC fez tour-relâmpago
O museu é sediado no antigo Palácio de Inverno, a residência oficial dos czares. Começou a ser construído em 1754 e ganhou ampliações e anexos ao longo do tempo, acabando por se constituir num complexo de cinco edifícios que se interligam. A coleção de arte compreende os três andares do edifício principal, o Palácio de Inverno propriamente dito, e os dois andares do Pequeno e do Grande Hermitage.
É possível preencher algumas páginas de jornal só descrevendo os tesouros que um turista apressado perde ao reduzir o Hermitage a 120 minutos de passeio -exemplo ilustre: a imprensa registra que, em 1994, o então presidente eleito, Fernando Henrique Cardoso, percorreu o Hermitage em duas horas e meia.
O museu, que o guia "Lonely Planet" define, sem medo de exagero, como sem paralelo no mundo -"existem galerias de arte, existem os museus, existem os grandes museus e, então, existe o Hermitage"-, é também um absurdo numérico. Ao todo, são 3 milhões de obras de arte, dos quais apenas 20% estão em exposição.
Os 800 quadros de pintura italiana e cem de pintura espanhola ficam obscurecidos pela impressionante coleção impressionista e pós-impressionista francesa, com 36 obras de Henri Matisse (1869-1954), 37 de Pablo Picasso (1881-1973), 15 de Paul Gauguin (1848-1903), quatro de Van Gogh (1853-1890), oito de Monet (1840-1926), e por aí afora.
Apenas a coleção holandesa e flamenga do Hermitage, disposta em seis grandes salas, num total de 500 obras, renderia um museu à parte, capaz de fazer frente ao Rijksmuseum de Amsterdã. São 37 quadros de Peter Paul Rubens (1577-1640), 22 de Antoon Van Dyck (1599-1641) e 22 de Rembrandt (1606-1669), incluindo uma bela versão de sua "Descida da Cruz" (1634) e a obra-prima "O Retorno do Filho Pródigo" (1663/1665) -passando por uma "Brazilian Landscape" (Paisagem Brasileira), de Frans Post (1612-1680), adquirida em 1939. A notável ausência é Johannes Vermeer (1632-1675).
Os turistas se acotovelam, e aqui com toda razão, para apreciar a "Diana", de Rembrandt, famosa pela qualidade intrínseca mas também por ter sido alvo, em 1985, de um maníaco que a atacou com ácido sulfúrico e duas punhaladas. O trabalho de restauração, que se prolongou por 12 anos, não foi suficiente para apagar os vestígios do ato de vandalismo.
A poucos metros dali, contudo, passam despercebidos os feitos ainda hoje notáveis de dois mestres em natureza morta, Pieter Claesz (1597-1661) e Willem Claesz (1594-1682).
A única obra no museu de um pintor chamado Jan Mandjin, ativo no século 16 na Antuérpia, chamada "Paisagem da Lenda de São Cristóvão", surpreende, pela similitude, os admiradores de Hieronymus Bosch (século 16).

Desorganização
Visitar o Hermitage é passear pela história concisa de vários séculos de arte. Após uma sala com cinco imensas pinturas de Giambattista Tiepolo (da série original de dez obras do artista, as outras estão em museus de Viena e Nova York), o visitante chega às duas madonas de Leonardo Da Vinci (1452-1519), dois destaques do acervo. Na "Madona com uma Flor" (1478-1480), também conhecida como "Madona Benois", por causa do nome da família do arquiteto russo que detinha a obra, Da Vinci retratou na mão da criança Jesus uma flor em forma de cruz, como se o bebê tivesse previsto o destino que o aguardava.
Se a riqueza do acervo e a beleza da construção são unanimidades, a organização do museu algumas vezes parece ser caótica. A inconstância é a marca. Em meados de abril, a Folha encontrou trancadas diversas salas de arte russa e duas salas da pintura italiana, sem qualquer aviso prévio ou explicação. Por outro lado, achou uma sala, a de número 65, que simplesmente não aparece nos mapas entregues aos turistas na entrada do museu.
Além da dificuldade com o idioma -em várias salas existe apenas o cirílico-, o turista terá problemas com a numeração das salas. Muitas vezes passa de um aposento a outro sem saber seus números, o que não lhe permite, ao checar a planta entregue na portaria, saber onde está. Mas, ao ver-se cercado de tantas obras-primas, isso fará alguma diferença? Quase nenhuma, pelo prazer proporcionado aos sentidos pelo triunfo russo chamado Hermitage.


MUSEU HERMITAGE
Praça do Palácio, de ter. a sáb., das 10h30 às 18h; e aos dom., das 10h30 às 17h. Quanto: 350 rublos (R$ 26); mais 100 rublos (R$ 7,50) para uso de câmera fotográfica e mais 350 rublos (R$ 26) para uso de câmera de vídeo; tel.: 00/xx/7/812/571-3420
www.hermitagemuseum.org


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