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FERNANDO GABEIRA
Os gases de ópio no teatro da guerra química
As imagens dos mortos no
teatro de Moscou talvez sejam remetidas para as mais recônditas gavetas da memória. No
entanto precisavam perdurar, como a mulher de preto sentada na
poltrona vermelha do teatro moscovita, com a cabeça para trás,
como se a morte a tivesse colhido
num momento do espetáculo, seduzida por um passo de dança,
uma frase musical.
Foi um momento da guerra
química. Levou 119 reféns a morrerem asfixiados, com parada respiratória provocada por um gás
oriundo do ópio. No princípio, os
russos não queriam dar o nome
do gás, o que pode ter contribuído
para a confusão dos médicos e para a morte de muitos hospitalizados. Talvez tenha sido a velha fidelidade aos segredos de Estado.
Como confessar que poderiam estar violentando um acordo internacional?
Embora seja um pouco arbitrário misturar episódios tão disparatados, as armas químicas estiveram presentes em Moscou e em
Belém do Pará. Na Rússia, o gás
fulminou espectadores e atores,
reféns dos rebeldes. Em Belém, foi
o técnico Leão, do Santos, que recebeu um jato no olho e durante
alguns minutos rodou pelo gramado, esfregando o rosto, mostrando nos olhos congestionados
a surpresa com a nova arma.
A pressão da opinião pública
internacional acabou forçando os
russos a revelarem os componentes do gás. Ele é baseado no ópio,
mas em doses preparadas pode
ser letal. E o foi para quase todos
os reféns. Já se usou muito o ópio
para garantir o domínio colonial
sobre a China. Agora usa-se uma
droga para transformá-la em arma química. E, finalmente, escolhem-se generais para combater o
uso de drogas, sob o argumento
de que elas minam a moral e os
bons costumes.
No momento em que a humanidade está prestes a entrar numa
guerra por causa de armas químicas, biológicas e nucleares, o gás
que emana dos debates não chega
a matar como o usado na Rússia,
mas é nauseante. Os EUA têm o
mérito de levantar a suspeita sobre o que aconteceu no teatro de
Moscou. Mas a sua relutância em
aceitar as normas internacionais
de fiscalização acaba contribuindo para essa hipocrisia.
Sua relutância em impulsionar
o artigo sexto do Tratado de Não-Proliferação Nuclear contribuiu
para surpresas desagradáveis, como a anunciada pela Coréia do
Norte. Agora os norte-coreanos
também pertencem ao restrito
grupo nuclear.
Toda essa confusão mundial está resvalando nas lentes de nossa
esperança. O Brasil está em lua-de-mel democrática, preparando-se para enfrentar um outro inimigo: a fome. A vitória é possível
com os recursos que temos. Claro,
talvez seja necessário produzir
um pouco mais de feijão.
Lembro-me, numa dessas longas viagens de caravana da cidadania, de ter parado numa cidade do Paraná onde algumas religiosas e nutricionistas nos serviram uma comida excelente, parte
dela feita com talos de legume e
cascas. Era apenas para mostrar
como se pode, inclusive, aproveitar melhor a comida que existe.
A esperança brasileira, se der
frutos concretos, já seria em si
mesma uma mensagem positiva
para o mundo. Mas nossa contribuição ficará mais completa se
ela se estender à política externa.
O presidente eleito Lula já deu a
tônica no seu primeira discurso,
mencionando a paz como um
compromisso fundamental de
nossa intervenção planetária.
A luta contra as armas químicas, biológicas e nucleares é uma
decorrência natural da esperança. Que força teríamos para desenvolvê-la? O prestígio de uma
das maiores democracias do
mundo, do sistema mais avançado de eleições, de uma biotecnologia voltada para o bem (por
exemplo, o mapeamento genético
da Xilella fastidiosa, a praga do
amarelinho) e um presidente
oriundo das classes mais pobres,
símbolo de uma globalização diferente, mais justa e solidária.
É sempre bom distinguir a esperança do delírio, as ações práticas
da poesia. Mas estamos num momento em que não custa nada colocar idéias sobre a mesa. As imagens do teatro de Moscou precisam ser processadas, metabolizadas, sobretudo num momento em
que sentimos o cheiro da guerra.
Aliás, uma guerra movida também por imagens tenebrosas, como as dos curdos massacrados
pelos gases venenosos do Iraque.
A única novidade que poderíamos acrescentar a esse processo,
para além de uma simples tomada de posição sobre a guerra, seria a tese de que novas mortes não
são o remédio para esses frutos
podres da ciência. É preciso começar de novo, como o povo brasileiro está tentando fazer agora.
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