São Paulo, segunda-feira, 04 de novembro de 2002

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FERNANDO GABEIRA

Os gases de ópio no teatro da guerra química

As imagens dos mortos no teatro de Moscou talvez sejam remetidas para as mais recônditas gavetas da memória. No entanto precisavam perdurar, como a mulher de preto sentada na poltrona vermelha do teatro moscovita, com a cabeça para trás, como se a morte a tivesse colhido num momento do espetáculo, seduzida por um passo de dança, uma frase musical.
Foi um momento da guerra química. Levou 119 reféns a morrerem asfixiados, com parada respiratória provocada por um gás oriundo do ópio. No princípio, os russos não queriam dar o nome do gás, o que pode ter contribuído para a confusão dos médicos e para a morte de muitos hospitalizados. Talvez tenha sido a velha fidelidade aos segredos de Estado. Como confessar que poderiam estar violentando um acordo internacional?
Embora seja um pouco arbitrário misturar episódios tão disparatados, as armas químicas estiveram presentes em Moscou e em Belém do Pará. Na Rússia, o gás fulminou espectadores e atores, reféns dos rebeldes. Em Belém, foi o técnico Leão, do Santos, que recebeu um jato no olho e durante alguns minutos rodou pelo gramado, esfregando o rosto, mostrando nos olhos congestionados a surpresa com a nova arma.
A pressão da opinião pública internacional acabou forçando os russos a revelarem os componentes do gás. Ele é baseado no ópio, mas em doses preparadas pode ser letal. E o foi para quase todos os reféns. Já se usou muito o ópio para garantir o domínio colonial sobre a China. Agora usa-se uma droga para transformá-la em arma química. E, finalmente, escolhem-se generais para combater o uso de drogas, sob o argumento de que elas minam a moral e os bons costumes.
No momento em que a humanidade está prestes a entrar numa guerra por causa de armas químicas, biológicas e nucleares, o gás que emana dos debates não chega a matar como o usado na Rússia, mas é nauseante. Os EUA têm o mérito de levantar a suspeita sobre o que aconteceu no teatro de Moscou. Mas a sua relutância em aceitar as normas internacionais de fiscalização acaba contribuindo para essa hipocrisia.
Sua relutância em impulsionar o artigo sexto do Tratado de Não-Proliferação Nuclear contribuiu para surpresas desagradáveis, como a anunciada pela Coréia do Norte. Agora os norte-coreanos também pertencem ao restrito grupo nuclear.
Toda essa confusão mundial está resvalando nas lentes de nossa esperança. O Brasil está em lua-de-mel democrática, preparando-se para enfrentar um outro inimigo: a fome. A vitória é possível com os recursos que temos. Claro, talvez seja necessário produzir um pouco mais de feijão.
Lembro-me, numa dessas longas viagens de caravana da cidadania, de ter parado numa cidade do Paraná onde algumas religiosas e nutricionistas nos serviram uma comida excelente, parte dela feita com talos de legume e cascas. Era apenas para mostrar como se pode, inclusive, aproveitar melhor a comida que existe.
A esperança brasileira, se der frutos concretos, já seria em si mesma uma mensagem positiva para o mundo. Mas nossa contribuição ficará mais completa se ela se estender à política externa. O presidente eleito Lula já deu a tônica no seu primeira discurso, mencionando a paz como um compromisso fundamental de nossa intervenção planetária.
A luta contra as armas químicas, biológicas e nucleares é uma decorrência natural da esperança. Que força teríamos para desenvolvê-la? O prestígio de uma das maiores democracias do mundo, do sistema mais avançado de eleições, de uma biotecnologia voltada para o bem (por exemplo, o mapeamento genético da Xilella fastidiosa, a praga do amarelinho) e um presidente oriundo das classes mais pobres, símbolo de uma globalização diferente, mais justa e solidária.
É sempre bom distinguir a esperança do delírio, as ações práticas da poesia. Mas estamos num momento em que não custa nada colocar idéias sobre a mesa. As imagens do teatro de Moscou precisam ser processadas, metabolizadas, sobretudo num momento em que sentimos o cheiro da guerra. Aliás, uma guerra movida também por imagens tenebrosas, como as dos curdos massacrados pelos gases venenosos do Iraque.
A única novidade que poderíamos acrescentar a esse processo, para além de uma simples tomada de posição sobre a guerra, seria a tese de que novas mortes não são o remédio para esses frutos podres da ciência. É preciso começar de novo, como o povo brasileiro está tentando fazer agora.



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