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São Paulo, segunda-feira, 05 de maio de 2003

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FERNANDO GABEIRA

Um dia difícil para cobras e tubarões

Um tubarão foi morto a pauladas numa das praias do Rio. Na tarde anterior, uma cobra-coral sofria o mesmo destino em Pernambuco. Os dois saíram juntos nos jornais: um ensanguentado na areia branca, a outra esticada no pau que a matou. Houve uma discussão meteórica, logo sepultada por razões que conheço como uma velha canção: "Há gente morrendo de fome e bala no Brasil".
Era como se adotássemos o conceito de Belíndia (a pequena Bélgica de riqueza cercada por uma pobreza do tamanho Índia) e estivéssemos muito concentrados em nossa porção belga, mimetizando os países mais ricos.
Acontece que uma visão ética no tratamento dos animais não é privilégio dos povos tecnicamente avançados. Não foi Gandhi quem disse que a relação com os animais é um índice importante de civilização de um país? Embora não tenha esses dados, suponho que na Índia existam mais vegetarianos do que na Alemanha.
De fato, a politização da defesa dos animais ganhou um grande impulso nos Estados Unidos. A prova disso é o Peta (Pessoas pela Ética no Tratamento de Animais, na sigla em inglês), uma organização que cresceu muito nos últimos anos. Foi a responsável por aquela ação contra Gisele Bündchen no desfile da Victoria's Secret e promove campanhas milionárias. Só de adolescentes já recrutou 8.000 militantes.
Sua líder, Ingrid Newkirk, é uma radical que escreveu um testamento autorizando a utilização de sua pele para mostrar que os humanos também poderiam servir para fazer bolsas.
E não quer ter filhos, pois acha que isso serve mais ao orgulho pessoal do que ao planeta.
Apesar de suas ações simbólicas, que vão de campanhas contra o uso de animais em circo à exposição de uma cena sexy para fazer sua propaganda (com toda a oposição feminista), o movimento de Newkirk cresce porque é uma expressão de algo muito profundo na economia americana: a modernização de sua grande indústria de alimentos.
Para se alimentarem, os norte-americanos matam 8 bilhões de animais por ano. As fazendas bucólicas desapareceram do mapa, pois não são mais econômicas. Gente menos radical que Newkirk admite que galinhas, porcos e vacas, para falar nos animais mais comuns, foram transformados em máquinas produtivas.
Monitorados por um sistema de computador que regula o oxigênio, a temperatura e os nutrientes nos alimentos, esses animais são colocados em lugares bem escuros para que achem que sempre é noite, comam o máximo e movam-se o mínimo.
Alguns novilhos são alimentados com um leite mais pobre em ferro e fibras, para que vivam sua curta existência anêmicos e produzam uma carne brilhante e pálida, preferida no mercado.
As normas econômicas são rígidas. Ninguém se atreve a criar bichos fora dos padrões estabelecidos porque isso arriscaria a morte de mais de 2% do plantel, inviabilizando o negócio.
Com a progressiva tomada de consciência e o surgimento de fortes grupos de pressão, a indústria de alimentos nos EUA vive momentos politicamente difíceis. Ora ela faz encontros para debater o tratamento ético dos animais, ora ela muda por dentro, como fez o McDonald's, estabelecendo normas para seus fornecedores de carne de frango, determinando auditorias em produtores de ovos, no intuito de reduzir ao máximo o atrito com o movimento de defesa dos animais.
Eles sabem que, na medida em que se divulga o modo como são tratados os bichos depois abatidos para consumo em casas e restaurantes, cresce o número de vegetarianos, o que é uma realidade nos EUA hoje. Daí sua preocupação, ao mesmo tempo em que lançam sanduíches vegetarianos para pôr um pé nesse mercado em ascensão na juventude.
Inibir a discussão de nosso relacionamento com os animais, argumentando que somos um país pobre a atrasado, significa uma grande liberdade para o McDonald's brasileiro, uma presença bastante ostensiva na nossa Bélgica. Mais do que isso, significa que, por sermos pobres e atrasados, devemos manter nossas mentes perpetuamente focadas nos problemas que deveriam ocupar os pobres e atrasados.
No fundo devemos todos estar agradecidos. Aos que fizeram a rápida discussão e aos que se indignaram com ela por acharem que estamos imitando países ricos. Qualquer movimento nos ajuda a sair da solidão dos gabinetes. Na minha mesa há três projetos que seriam enriquecidos com a interferência pública.
Um deles trata do fato de que estão entupindo os frangos de antibióticos -e isso é uma fonte permanente de diarréia-, sem que isso seja detectado pelos órgãos sanitários. O outro proíbe o uso de animais em circos. Quais são os limites da proibição? Finalmente, trabalha-se nos corredores em um projeto que deveria ser conhecido por todos: o que controla as experiências científicas com os animais.
Num debate de TV, um sociólogo dizia que o tubarão morto a pauladas era apenas uma metáfora, pois os cariocas estavam desesperados com problemas de violência que não conseguem resolver. O tubarão estaria apenas substituindo os temíveis bandidos. Se é esse o caso, poderíamos argumentar da mesma forma com que se critica a farra do boi.
Por que não participar do ritual transitando para um símbolo de pano e papel, como o bumba-meu-boi? Para isso há os judas que são malhados nas esquinas do país todo.
Radicais do movimento de defesa dos animais como Newkirk querem salvar os animais e estão pouco se importando com os seres humanos, reduzidos para eles a comedores de hambúrgueres, cúmplices do holocausto de bilhões de animais.
Gandhi sabia que a violência conecta homens e bichos, daí ter optado por um movimento bem mais profundo do que os spots publicitários na TV e o susto na Gisele Bündchen.




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