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FERNANDO GABEIRA
Um dia difícil para cobras e tubarões
Um tubarão foi morto a
pauladas numa das praias
do Rio. Na tarde anterior, uma
cobra-coral sofria o mesmo destino em Pernambuco. Os dois saíram juntos nos jornais: um ensanguentado na areia branca, a
outra esticada no pau que a matou. Houve uma discussão meteórica, logo sepultada por razões
que conheço como uma velha
canção: "Há gente morrendo de
fome e bala no Brasil".
Era como se adotássemos o conceito de Belíndia (a pequena Bélgica de riqueza cercada por uma
pobreza do tamanho Índia) e estivéssemos muito concentrados em
nossa porção belga, mimetizando
os países mais ricos.
Acontece que uma visão ética
no tratamento dos animais não é
privilégio dos povos tecnicamente
avançados. Não foi Gandhi quem
disse que a relação com os animais é um índice importante de
civilização de um país? Embora
não tenha esses dados, suponho
que na Índia existam mais vegetarianos do que na Alemanha.
De fato, a politização da defesa
dos animais ganhou um grande
impulso nos Estados Unidos. A
prova disso é o Peta (Pessoas pela
Ética no Tratamento de Animais,
na sigla em inglês), uma organização que cresceu muito nos últimos anos. Foi a responsável por
aquela ação contra Gisele Bündchen no desfile da Victoria's Secret e promove campanhas milionárias. Só de adolescentes já recrutou 8.000 militantes.
Sua líder, Ingrid Newkirk, é
uma radical que escreveu um testamento autorizando a utilização
de sua pele para mostrar que os
humanos também poderiam servir para fazer bolsas.
E não quer ter filhos, pois acha
que isso serve mais ao orgulho
pessoal do que ao planeta.
Apesar de suas ações simbólicas, que vão de campanhas contra o uso de animais em circo à
exposição de uma cena sexy para
fazer sua propaganda (com toda
a oposição feminista), o movimento de Newkirk cresce porque é
uma expressão de algo muito profundo na economia americana: a
modernização de sua grande indústria de alimentos.
Para se alimentarem, os norte-americanos matam 8 bilhões de
animais por ano. As fazendas bucólicas desapareceram do mapa,
pois não são mais econômicas.
Gente menos radical que Newkirk
admite que galinhas, porcos e vacas, para falar nos animais mais
comuns, foram transformados
em máquinas produtivas.
Monitorados por um sistema de
computador que regula o oxigênio, a temperatura e os nutrientes
nos alimentos, esses animais são
colocados em lugares bem escuros
para que achem que sempre é
noite, comam o máximo e movam-se o mínimo.
Alguns novilhos são alimentados com um leite mais pobre em
ferro e fibras, para que vivam sua
curta existência anêmicos e produzam uma carne brilhante e pálida, preferida no mercado.
As normas econômicas são rígidas. Ninguém se atreve a criar bichos fora dos padrões estabelecidos porque isso arriscaria a morte
de mais de 2% do plantel, inviabilizando o negócio.
Com a progressiva tomada de
consciência e o surgimento de fortes grupos de pressão, a indústria
de alimentos nos EUA vive momentos politicamente difíceis.
Ora ela faz encontros para debater o tratamento ético dos animais, ora ela muda por dentro,
como fez o McDonald's, estabelecendo normas para seus fornecedores de carne de frango, determinando auditorias em produtores de ovos, no intuito de reduzir
ao máximo o atrito com o movimento de defesa dos animais.
Eles sabem que, na medida em
que se divulga o modo como são
tratados os bichos depois abatidos para consumo em casas e restaurantes, cresce o número de vegetarianos, o que é uma realidade
nos EUA hoje. Daí sua preocupação, ao mesmo tempo em que lançam sanduíches vegetarianos para pôr um pé nesse mercado em
ascensão na juventude.
Inibir a discussão de nosso relacionamento com os animais, argumentando que somos um país
pobre a atrasado, significa uma
grande liberdade para o McDonald's brasileiro, uma presença
bastante ostensiva na nossa Bélgica. Mais do que isso, significa
que, por sermos pobres e atrasados, devemos manter nossas mentes perpetuamente focadas nos
problemas que deveriam ocupar
os pobres e atrasados.
No fundo devemos todos estar
agradecidos. Aos que fizeram a
rápida discussão e aos que se indignaram com ela por acharem
que estamos imitando países ricos. Qualquer movimento nos
ajuda a sair da solidão dos gabinetes. Na minha mesa há três projetos que seriam enriquecidos
com a interferência pública.
Um deles trata do fato de que
estão entupindo os frangos de antibióticos -e isso é uma fonte
permanente de diarréia-, sem
que isso seja detectado pelos órgãos sanitários. O outro proíbe o
uso de animais em circos. Quais
são os limites da proibição? Finalmente, trabalha-se nos corredores
em um projeto que deveria ser conhecido por todos: o que controla
as experiências científicas com os
animais.
Num debate de TV, um sociólogo dizia que o tubarão morto a
pauladas era apenas uma metáfora, pois os cariocas estavam desesperados com problemas de violência que não conseguem resolver. O tubarão estaria apenas
substituindo os temíveis bandidos. Se é esse o caso, poderíamos
argumentar da mesma forma
com que se critica a farra do boi.
Por que não participar do ritual
transitando para um símbolo de
pano e papel, como o bumba-meu-boi? Para isso há os judas
que são malhados nas esquinas
do país todo.
Radicais do movimento de defesa dos animais como Newkirk
querem salvar os animais e estão
pouco se importando com os seres
humanos, reduzidos para eles a
comedores de hambúrgueres,
cúmplices do holocausto de bilhões de animais.
Gandhi sabia que a violência
conecta homens e bichos, daí ter
optado por um movimento bem
mais profundo do que os spots publicitários na TV e o susto na Gisele Bündchen.
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