São Paulo, segunda-feira, 05 de agosto de 2002

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FERNANDO GABEIRA

Há alguma coisa no ar e são os aviões de carreira

"H á alguma coisa no ar e não são os aviões de carreira." Quando o barão de Itararé escreveu essa frase, fazia apenas uma piada com o clima de tensão política no país. Não havia naquela época o intenso tráfico de drogas, um comércio milionário que utiliza todos os meios de transporte, inclusive aviões.
Foi para deter o tráfico de drogas que os norte-americanos inventaram a Lei do Abate, que consiste em derrubar qualquer avião desconhecido que não atenda às ordens de aterrissar.
Estava conduzindo um combate político contra essa lei, que introduz a pena de morte no Brasil por caminhos bárbaros, que suprimem julgamento e que significam também a morte de quem estiver ao lado do piloto. Julguei que estivesse quase sozinho, até que recebi um telefonema de apoio do presidente da Rio-Sul, George Hermakoff.
Fui visitá-lo cheio de esperança. Pessoalmente, até que ele não se considera um adversário apaixonado da lei. Mas queria combatê-la, entre outras coisas, em homenagem ao comandante Rolim, o fundador da TAM, este sim disposto a brigar contra ela, mesmo que tivesse de contrariar o ministro da Defesa.
O encontro com Hermakoff enriqueceu minha visão do problema, que eu abordava apenas de um ponto de vista político e moral. Ele lembrou que muitos pilotos na Amazônia não têm carteira de habilitação e por isso fogem do controle. Outros fogem por não ter exames médicos atualizados. Há quem voe com rádio desligado e muitos se arriscam a viajar mesmo com o equipamento em pane.
A Amazônia, portanto, é cheia de vôos irregulares. No entanto eles não merecem a pena de morte, que certamente seria decretada se a Aeronáutica resolvesse abater os aviões.
Como evitar que esses bombardeios matem inocentes? Como manter fora de nossas fronteiras esse sinistro produto americano que é a pena de morte? A resposta não é fácil, pois os militares precisam exercer a soberania brasileira em nosso espaço aéreo.
Ainda raciocinando tecnicamente, Hermakoff apresenta uma solução que poderia ser válida para toda a América Latina: em vez de projéteis de verdade, a utilização de uma bala de tinta, que, explodindo no avião, o manchasse com uma tinta quase indelével, difícil de ser removida.
Se nossos caças forem capazes de escoltar e manchar um avião suspeito, terão cumprido uma tarefa muito mais inteligente. Em primeiro lugar, porque não matarão, e isso já é uma razão. Em segundo lugar, porque facilitam o interrogatório de suspeitos, o que pode aumentar a eficácia do trabalho investigativo.
Em homenagem ao seu amigo Rolim, Hermakoff chegou a consultar técnicos da Boeing e obteve deles uma resposta positiva: sim, era possível produzir uma tinta que, manchando o avião, não saísse durante um bom tempo.
Saí da visita esperando que ele escrevesse um artigo expondo suas propostas, que me parecem sensatas.
Lembram-nos do comandante Rolim, que, além de piloto, era também motociclista e, nas horas mais intensas, trabalhava recolhendo cartões de embarque na porta dos aviões da TAM.
Se Rolim estivesse vivo, estaríamos ombro a ombro tentando mudar a posição do governo. Aliás, creio que a posição do presidente Fernando Henrique Cardoso é a mais vulnerável, nesse ponto. Está em fim de governo. Para que regulamentar uma lei tão odiosa?
Se o horizonte do presidente é uma carreira internacional, é bom lembrar que, nesse espaço, levam mais chances os conciliadores do que os falcões, sobretudo quando guiados pelos autênticos falcões norte-americanos.
Fernando Henrique, que fez as pazes do Peru com o Equador e contribuiu para inúmeros processos de paz, é o estadista para exportação, aquele que deverá ocupar um espaço de sua inteligência e cultura. Regulamentar uma lei dessas, no apagar das luzes, seria uma imprudência.
Por que fazer agora a briga que poderia ser feita no ano que vem, quando o novo presidente, cheio de energia, assumir o cargo?
Com uma lei dessas em vigor, a Amazônia passará a ser um território ainda mais perigoso. Um pouco como as favelas de hoje, onde balas perdidas e equívocos da polícia costumam matar tantos inocentes. Vamos levar nossa loucura para os ares, ao som do hino norte-americano.



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