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FERNANDO GABEIRA
As brumas sobre o rio da Prata
A cordo no 19º andar do
confortável hotel Radisson e
vejo Montevidéu envolta em brumas. Sumiu o rio da Prata, sumiram os prédios mais baixos, e só
algumas estruturas metálicas
emergem das brumas, refletindo
os primeiros raios de sol.
Tento captar essa imagem com
minha pequena câmera. Percebo
então que as janelas não abrem
no hotel. É preciso chamar alguém que tenha uma chave especial para soltar um parafuso que
as imobiliza.
Mas aí será tarde demais. O sol
vem comendo a bruma com voracidade e, dali a alguns minutos, a
magia já terá sido desfeita.
Resolvo tirar as fotos com a janela fechada, perdendo um ponto
no diafragma e um pouco do brilho misterioso dessa manhã.
Do outro lado do rio, está a Argentina. A bruma que envolve
Montevidéu, embora perdida para uma boa foto, é uma excelente
metáfora para a crise econômica
que assusta o Mercosul. Com todos os uruguaios com que conversei, a pergunta era a mesma: até
que ponto vamos resistir à crise
do nosso imenso vizinho?
O primeiro baque que o Uruguai sentiu foi quando o Brasil
desvalorizou o real. Em seguida,
veio o caos econômico na Argentina. Algum capital atravessou a
fronteira, para se abrigar do colapso. Em compensação caiu o comércio, sumiram os turistas e, sobretudo, abalou-se o sonho do
mercado comum.
Apesar desse fantasma no ar, os
uruguaios tiveram que se concentrar num tema paralelo: a ruptura de relações diplomáticas com
Cuba. O Uruguai apresentou moção na Organização das Nações
Unidas conclamando Cuba a melhorar o quadro de direitos humanos na ilha.
O texto era moderado, reconhecia as conquistas sociais e se dispunha a enviar um representante
das Nações Unidas para dialogar
com Fidel. A reação cubana foi
contundente: o governo uruguaio
é um lacaio do imperialismo norte-americano.
O rompimento, aprovado por
apenas 17% dos uruguaios, não
tem grande repercussão econômica. O problema mesmo está ali, do
outro lado do rio, a duas horas de
barco. O futuro da Argentina vai
pesar sobre o Uruguai e também
sobre o Brasil.
Estávamos num encontro de
parlamentares sul-americanos e
caribenhos. Mas os argentinos
não vieram para dialogar conosco. A barra estava pesada demais
para deixar o país, com tantas
medidas urgentes a serem votadas. No entanto saí do Uruguai
com a impressão de que essa é a
nossa tarefa básica: discutir a Argentina, inventar formas de solidariedade, pressionar conjuntamente os países mais ricos e as
instituições internacionais.
Basta andar um pouco pelas
ruas de Montevidéu, observar os
grandes cartazes e ver televisão
para perceber que nossos destinos
já estão entrelaçados. Você abre
as páginas do "El País" e vê a foto
de Vera Fisher anunciando "Laços de Família". Afinal, com
quem vai ficar o herói: com a mãe
ou com a filha?
Só um delírio como o de Jean-Marie Le Pen pode propor que se
pare o mundo para que os 100%
nacionais desçam e sigam sua pura trajetória. Em termos de Mercosul, estamos no limite do "ou
vai ou racha". Temos de fazer tudo para que vá, acreditar na integração, na moeda comum.
Durante tantos séculos nos demos as costas, olhando para os colonizadores, querendo ser como
eles, tratando-nos com a arrogância da metrópole, como se isso
bastasse para nos distinguir.
O trágico dessa perspectiva foi
ignorar que sempre estivemos no
mesmo barco e só agora, com os
blocos regionais impulsionados
pela globalização, descobrimos
nosso destino comum.
O sol devorou as brumas sobre o
Prata em menos de uma hora.
Nossa tarefa talvez leve mais
tempo. Mas saí de Montevidéu
certo de que existe uma missão e
seu primeiro marco é o despertar
do pesadelo argentino.
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