São Paulo, segunda-feira, 06 de maio de 2002

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FERNANDO GABEIRA

As brumas sobre o rio da Prata

A cordo no 19º andar do confortável hotel Radisson e vejo Montevidéu envolta em brumas. Sumiu o rio da Prata, sumiram os prédios mais baixos, e só algumas estruturas metálicas emergem das brumas, refletindo os primeiros raios de sol.
Tento captar essa imagem com minha pequena câmera. Percebo então que as janelas não abrem no hotel. É preciso chamar alguém que tenha uma chave especial para soltar um parafuso que as imobiliza.
Mas aí será tarde demais. O sol vem comendo a bruma com voracidade e, dali a alguns minutos, a magia já terá sido desfeita.
Resolvo tirar as fotos com a janela fechada, perdendo um ponto no diafragma e um pouco do brilho misterioso dessa manhã.
Do outro lado do rio, está a Argentina. A bruma que envolve Montevidéu, embora perdida para uma boa foto, é uma excelente metáfora para a crise econômica que assusta o Mercosul. Com todos os uruguaios com que conversei, a pergunta era a mesma: até que ponto vamos resistir à crise do nosso imenso vizinho?
O primeiro baque que o Uruguai sentiu foi quando o Brasil desvalorizou o real. Em seguida, veio o caos econômico na Argentina. Algum capital atravessou a fronteira, para se abrigar do colapso. Em compensação caiu o comércio, sumiram os turistas e, sobretudo, abalou-se o sonho do mercado comum.
Apesar desse fantasma no ar, os uruguaios tiveram que se concentrar num tema paralelo: a ruptura de relações diplomáticas com Cuba. O Uruguai apresentou moção na Organização das Nações Unidas conclamando Cuba a melhorar o quadro de direitos humanos na ilha.
O texto era moderado, reconhecia as conquistas sociais e se dispunha a enviar um representante das Nações Unidas para dialogar com Fidel. A reação cubana foi contundente: o governo uruguaio é um lacaio do imperialismo norte-americano.
O rompimento, aprovado por apenas 17% dos uruguaios, não tem grande repercussão econômica. O problema mesmo está ali, do outro lado do rio, a duas horas de barco. O futuro da Argentina vai pesar sobre o Uruguai e também sobre o Brasil.
Estávamos num encontro de parlamentares sul-americanos e caribenhos. Mas os argentinos não vieram para dialogar conosco. A barra estava pesada demais para deixar o país, com tantas medidas urgentes a serem votadas. No entanto saí do Uruguai com a impressão de que essa é a nossa tarefa básica: discutir a Argentina, inventar formas de solidariedade, pressionar conjuntamente os países mais ricos e as instituições internacionais.
Basta andar um pouco pelas ruas de Montevidéu, observar os grandes cartazes e ver televisão para perceber que nossos destinos já estão entrelaçados. Você abre as páginas do "El País" e vê a foto de Vera Fisher anunciando "Laços de Família". Afinal, com quem vai ficar o herói: com a mãe ou com a filha?
Só um delírio como o de Jean-Marie Le Pen pode propor que se pare o mundo para que os 100% nacionais desçam e sigam sua pura trajetória. Em termos de Mercosul, estamos no limite do "ou vai ou racha". Temos de fazer tudo para que vá, acreditar na integração, na moeda comum.
Durante tantos séculos nos demos as costas, olhando para os colonizadores, querendo ser como eles, tratando-nos com a arrogância da metrópole, como se isso bastasse para nos distinguir.
O trágico dessa perspectiva foi ignorar que sempre estivemos no mesmo barco e só agora, com os blocos regionais impulsionados pela globalização, descobrimos nosso destino comum.
O sol devorou as brumas sobre o Prata em menos de uma hora.
Nossa tarefa talvez leve mais tempo. Mas saí de Montevidéu certo de que existe uma missão e seu primeiro marco é o despertar do pesadelo argentino.


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