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São Paulo, segunda-feira, 07 de abril de 2003

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FERNANDO GABEIRA

O Paraíba do Sul morrendo envenenado no mar

São Fidelis - A noite nos alcançou a 30 quilômetros de Campos. Dormimos num sítio à margem do rio Paraíba do Sul. Ele corre silencioso para o mar. Não se vê na escuridão da noite a dimensão da tragédia. Mas, quando vamos à margem do rio e colhemos um pouco de sua água, o desastre se revela em cores. A água está negra. Na parede do sítio há uma foto do Paraíba do Sul nos seus dias normais. O céu azul se reflete na água do rio.
Vimos peixes mortos emergindo da espuma. Diz um pescador que muitos peixes ficaram tontos, foram pescados e comidos pelos ribeirinhos. Não deviam fazer isso. Mas em Santo Amaro, na Bahia, não deviam ter usado chumbo para calçar as ruas e os pátios das escolas. Na Cidade dos Meninos, em Caxias do Sul, não deviam brincar com o pó de broca como se fosse floco de neve. Nem em Goiânia deviam distribuir pedaços do césio 137 como se fosse uma pedra preciosa.
Por mais cansados, temos de inventar um meio de abordar o desastre. São mais de 80 quilômetros de um curso venenoso.
Tudo começou num córrego que deságua no Pomba, que deságua no Paraíba do Sul, que agora corre negro, espumante e venenoso rumo ao mar. Para onde seguir? Para o seu encontro com o mar, em São João da Barra, ou para Cataguases, onde 1,2 milhão de metros cúbicos de veneno foram despejados na água?
Logo Cataguases, que nos deu a revista "Verde", do movimento modernista. O que diria o escritor Rosário Fusco diante desses peixes mortos, que agora, no fim da noite, vêm dar nas margens?
No avião da Ocean Air para Campos, a voz do piloto anunciava com uma distância contida: "Cuidado com a água de Campos, houve um desastre ecológico". Na primeira ponte, vimos os cuidados do povo com o Paraíba do Sul. Transeuntes olhavam suas águas para tentar decifrar o que aconteceu, como se as vendo quase negras pudessem entender o que se passou.
Tentei sentir o cheiro. Nada. Amanhã começo minha longa jornada para entender esse desastre. Não tenho planos. Felizmente. Na noite anterior, falei com gente da Agência Nacional de Águas. Mandaram abrir alguns reservatórios para aumentar o volume e apressar o fluxo do rio.
Isso significa apenas livrar, mais rapidamente, as cidades do pesadelo. Mas, quanto mais rápido corre o rio, mais ele se aproxima do mar. Meu sonho é atenuar o impacto do veneno. Para isso, é preciso conhecer sua composição, pedir socorro pela internet, descobrir algo que neutralize seu impacto, um antídoto.
Sei que isso vai parecer ridículo daqui a algumas horas, quando tiver mais dados. Mas sinto também pelo mar. No Rio de Janeiro, nas últimas semanas, tem aparecido uma espuma branca. E os meninos continuam surfando.
Nasci nas margens do Paraibuna, que, como diz nosso grande poeta Murilo Mendes, tem de passar por Juiz de Fora. Pomba, Paraibuna, Paraíba do Sul, todos ficaram para trás diante da imensidão do mar.
Hoje os rios vão sendo assassinados um a um. O próprio mar, perto das grandes cidades, é um convite frustrante. De longe, águas radiosas; de perto, a sujeira, o mau cheiro.
O que fizemos do Brasil? Quem somos nós sem nossa paisagem? Hoje adormeço ao lado do Paraíba do Sul, pressentindo o curso de sua água escura. Morro um pouco com ele. Amanhã recomeço, mergulho na realidade, trabalho.
Um pescador me disse agora, antes de dormir, que a água está menos escura à noite. "Bom sinal", digo eu. "Bom sinal", responde. O rio é duro. Teremos de ser duros. Morrer sem uma lágrima nos olhos. Secamente.



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