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FERNANDO GABEIRA
O Paraíba do Sul morrendo envenenado no mar
São Fidelis - A noite nos alcançou a 30 quilômetros de
Campos. Dormimos num sítio à
margem do rio Paraíba do Sul.
Ele corre silencioso para o mar.
Não se vê na escuridão da noite a
dimensão da tragédia. Mas,
quando vamos à margem do rio e
colhemos um pouco de sua água,
o desastre se revela em cores. A
água está negra. Na parede do sítio há uma foto do Paraíba do Sul
nos seus dias normais. O céu azul
se reflete na água do rio.
Vimos peixes mortos emergindo
da espuma. Diz um pescador que
muitos peixes ficaram tontos, foram pescados e comidos pelos ribeirinhos. Não deviam fazer isso.
Mas em Santo Amaro, na Bahia,
não deviam ter usado chumbo
para calçar as ruas e os pátios das
escolas. Na Cidade dos Meninos,
em Caxias do Sul, não deviam
brincar com o pó de broca como
se fosse floco de neve. Nem em
Goiânia deviam distribuir pedaços do césio 137 como se fosse uma
pedra preciosa.
Por mais cansados, temos de inventar um meio de abordar o desastre. São mais de 80 quilômetros de um curso venenoso.
Tudo começou num córrego
que deságua no Pomba, que deságua no Paraíba do Sul, que agora
corre negro, espumante e venenoso rumo ao mar. Para onde seguir? Para o seu encontro com o
mar, em São João da Barra, ou
para Cataguases, onde 1,2 milhão
de metros cúbicos de veneno foram despejados na água?
Logo Cataguases, que nos deu a
revista "Verde", do movimento
modernista. O que diria o escritor
Rosário Fusco diante desses peixes mortos, que agora, no fim da
noite, vêm dar nas margens?
No avião da Ocean Air para
Campos, a voz do piloto anunciava com uma distância contida:
"Cuidado com a água de Campos, houve um desastre ecológico". Na primeira ponte, vimos os
cuidados do povo com o Paraíba
do Sul. Transeuntes olhavam
suas águas para tentar decifrar o
que aconteceu, como se as vendo
quase negras pudessem entender
o que se passou.
Tentei sentir o cheiro. Nada.
Amanhã começo minha longa
jornada para entender esse desastre. Não tenho planos. Felizmente. Na noite anterior, falei com
gente da Agência Nacional de
Águas. Mandaram abrir alguns
reservatórios para aumentar o
volume e apressar o fluxo do rio.
Isso significa apenas livrar,
mais rapidamente, as cidades do
pesadelo. Mas, quanto mais rápido corre o rio, mais ele se aproxima do mar. Meu sonho é atenuar
o impacto do veneno. Para isso, é
preciso conhecer sua composição,
pedir socorro pela internet, descobrir algo que neutralize seu impacto, um antídoto.
Sei que isso vai parecer ridículo
daqui a algumas horas, quando
tiver mais dados. Mas sinto também pelo mar. No Rio de Janeiro,
nas últimas semanas, tem aparecido uma espuma branca. E os
meninos continuam surfando.
Nasci nas margens do Paraibuna, que, como diz nosso grande
poeta Murilo Mendes, tem de passar por Juiz de Fora. Pomba, Paraibuna, Paraíba do Sul, todos ficaram para trás diante da imensidão do mar.
Hoje os rios vão sendo assassinados um a um. O próprio mar,
perto das grandes cidades, é um
convite frustrante. De longe,
águas radiosas; de perto, a sujeira, o mau cheiro.
O que fizemos do Brasil? Quem
somos nós sem nossa paisagem?
Hoje adormeço ao lado do Paraíba do Sul, pressentindo o curso de
sua água escura. Morro um pouco com ele. Amanhã recomeço,
mergulho na realidade, trabalho.
Um pescador me disse agora,
antes de dormir, que a água está
menos escura à noite. "Bom sinal", digo eu. "Bom sinal", responde. O rio é duro. Teremos de
ser duros. Morrer sem uma lágrima nos olhos. Secamente.
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