São Paulo, segunda, 7 de julho de 1997.



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FIM DA SIESTA
Movimento iniciado em 1º de janeiro de 94 luta agora pelas comunidades indígenas
Guia vê gênese da revolta zapatista

free-lance para a Folha

Raul Garcia López, 39, é guia turístico nos Estados de Tabasco, Quintana Roo e Yucatán, na região de Chiapas, desde 1982.
É considerado um dos melhores no sul do México. Seu nome consta em diversos guias de viagem. É casado e tem quatro filhos.
Profundo conhecedor do movimento zapatista, Garcia López deu a seguinte entrevista.

1º DE JANEIRO DE 1994 - A revolta, que estourou nesse dia e que concebeu o movimento zapatista, vinha crescendo entre marginalizados e camponeses sem terra de Chiapas e outros Estados.
Muitos falam sobre uma guerra que, em Chiapas, não existiu. Existiu um problema, um conflito, mas não uma guerra civil.
Hoje, o movimento está preocupado com os problemas das comunidades indígenas. Os índios precisam de infra-estrutura, educação e saúde. Muitos dizem que eles vivem em pobreza absoluta e sem oportunidades. Isso é falso. Eles possuem terras ricas em café, cacau, petróleo, gado e urânio.

TOMADA DE SAN CRISTÓBAL - No dia 31 de dezembro, assisti à missa na catedral de San Cristóbal. Lá fomos informados que algo extraordinário iria acontecer.
Poderia ter sido um terremoto ou algo do gênero. Foi um momento de grande confusão.
No réveillon, nas ruas de San Cristóbal, há grande queima de fogos de artifício. Pensamos que as bombas faziam parte da festa. Mais tarde (à 1h), nos demos conta que se tratava da tomada de San Cristóbal pelos rebeldes zapatistas.
FORÇAS ZAPATISTAS - O subcomandante Marcos tomou a cidade com aproximadamente 1.000 soldados (200 bem armados e 800 mal armados). Marcos invadiu San Cristóbal de uma forma audaz e sem agredir a população civil.
Ele prendeu pessoas ligadas ao governo e invadiu diversos prédios públicos.
Curiosamente, nesse dia, não havia guardas. Os policiais haviam abandonado seus postos. Normalmente, nas festas populares, em qualquer parte do México, é costume duplicar o número de policiais.
Marcos queimou toda a documentação da prefeitura e papéis das dívidas dos habitantes locais. Ele foi sensato e não destruiu documentos históricos da cidade e das comunidades indígenas.
Em 1º de janeiro, San Cristóbal estava repleta de turistas. Muitos tinham como destino Palenque (sítio arqueológico maia), e outros tinham de retornar a Tuxtla Gutiérrez para ir ao aeroporto.
Todos tiveram de permanecer um dia a mais. Alguns ficaram contentes em posar com Marcos.
POLÍCIA E IMPRENSA - O pouco policiamento foi um fenômeno estranho. A partir do dia 3, a cidade foi invadida por mais de 2.500 jornalistas de todo o mundo. Os turistas abandonaram rapidamente a região. Nesse período, acabei virando guia de jornalistas.
Até agora, os chiapanecos não sabem que guerra é essa que teria acontecido em Chiapas, tão divulgada pela mídia internacional.
A verdade é que não tivemos nenhuma guerra, o que ocorreu foi um problema, um enfrentamento no município de Ocosingo. Nele, cerca de 150 pessoas morreram, entre zapatistas, militares e civis.
Depois desse combate, não houve mais disparos. Tudo o que se sucedeu foram vinganças, que já vinham se acumulando, e assassinatos por divergências políticas.
ANÁLISE - Na minha opinião, o movimento despertou muitos sentimentos adormecidos. Os herdeiros dos maias e astecas, donos dessas terras, são vítimas da pior pobreza e discriminação desde a chegada dos colonizadores espanhóis.
Uma das máximas de Marcos sintetiza as razões do movimento: "Despertar a consciência de cada cidadão que vive em Chiapas e em todo o México".
NAFTA - Curiosamente, o tratado de livre comércio entre México, EUA e Canadá nasceu no dia 1º de janeiro de 1994. Nós, chiapanecos, tivemos, no início, apenas 5% de informação sobre o tratado.
Estou inseguro. As comunidades indígenas nada sabem sobre o Nafta. O governo não informa.
ÍNDIOS - Nas comunidades antigas, de modo geral, não ocorreu mudança alguma com o movimento. Onde os zapatistas têm presença marcante é a região de Las Canadas, na selva Lacandona.
Ali existem dezenas de assentamentos de indígenas e mestiços marginalizados pela sociedade.
Eles se uniram e criaram novas comunidades (La Sultana, Ibarra, Patihuitz, La Realidad, San Antonio de las Delicias, Tierra y Libertad, Betania etc.). Essas comunidades são muito parecidas com os kibutzim, de Israel, e estão ligadas ao movimento zapatista.
COMUNICAÇÃO - Nas comunidades indígenas, mantenho amizade com presidentes municipais e com conselhos de anciões.
Aprendi muito sobre seus costumes, tradições e forma de vida, dentro do limite imposto pelas lideranças. Sou mestiço, minha mãe era indígena, e meu pai, mexicano. Falo tzotzil, tzeltal e maia.
CONVITE - Espero que os brasileiros venham nos visitar. As comunidades indígenas precisam do apoio deles, e, com certeza, eles levarão daqui boas recordações.
(ARTHUR VERÍSSIMO)



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