São Paulo, segunda-feira, 08 de janeiro de 2001

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FERNANDO GABEIRA
O mundo acaba em Copacabana durante as festas de réveillon

Depois de feriados marcados por um grande número de desastres nas estradas, pensei que o réveillon seria só festa. Aí, caíram as grades no estádio do Vasco e, com 58 feridos, o novo milênio entrou como uma bomba pelas ruas de Copacabana.
Moro em Copacabana e posso dizer de coração: esse espetáculo anual, considerado uma das maiores atrações do mundo, está ficando insustentável, não só no sentido ecológico, mas por sua própria capacidade de divertir.
Para começar, é muita gente, gente demais. Os moradores de alguns prédios sublocam seus apartamentos. Num deles, onde vivia apenas um casal, entraram 40 pessoas dispostas a comer, beber, festejar. Os relatos da moradora do apartamento de baixo são assustadores.
Imagine um prédio onde você ouve o barulho da descarga do banheiro do vizinho. Imagine essa descarga funcionando a todo vapor, noite adentro. Se os banheiros do apartamento dessem vazão, tudo bem. Acontece que, às vezes, você desperta, sai para o trabalho e vê um um filete de xixi descendo pelas escadas.
Quarenta pessoas nunca se deslocam em carros, mas, sim, naqueles ônibus de turismo que atravancam as ruas, sobretudo as mais estreitas, de onde partem os carros do Corpo de Bombeiros. Eles descem com a sirene aberta, mas, quando sentem algum obstáculo, intensificam o barulho.
A última pessoa que você acha depois que os turistas são entregues no endereço é o motorista do ônibus, que veio de Manaus transportando aquela gente barulhenta e ávida de emoções. Tudo o que ele quer, após estacionar no Rio, é buscar um bairro bem distante para descansar e voltar no dia em que for preciso reconduzi-los ao seu destino.
Atrás do prédio onde ficaram os 40, as crianças se apossando do elevador para torná-lo um brinquedo, morava um discreto casal gay. O casal resolveu viajar e alugou o apartamento de dois quartos para 30 pessoas.
Esses dois exemplos mostram como Copacabana tem sua população bruscamente aumentada nessa época do ano. Milhões de pessoas que vêm apenas para se divertir e voltam ao amanhecer.
Os viajantes europeus que passaram pelo Brasil no século 19 produziram relatos bem vivos de nossas festas populares. Reclamaram do cheiro da comida, dos líquidos e secreções humanas, enfim, eram arrebatados ou repelidos pela mistura de sensualidade e sujeira, reportadas em cidades como Rio e Salvador.
Nem sempre simpatizei com esses relatos, sobretudo depois de ler "Pureza e Perigo", de Mary Douglas, onde a antropóloga fala da insegurança que se sente diante do que nos parece sujo e desorganizado em outras culturas.
Agora, vendo tudo mais de perto, começo a admitir que uma coisa era o cheiro de dendê, urina e esperma numa festa popular do século 19, outra coisa são as festas do fim do século 20. Em Copacabana, havia mais gente do que a população brasileira em alguns momentos da história colonial.
Uma festa com 2 milhões de pessoas concentradas num só ponto da cidade provoca inúmeros problemas de segurança.
Os fogos de artifício ficaram mais sofisticados e poderosos, as armas, mais populares, as possibilidades de contaminação alimentar aumentaram com a presença de centenas de vendedores ambulantes não fiscalizados.
Rubem Braga escreveu uma crônica intitulada "Ai de Ti, Copacabana", na qual o bairro sucumbiria por seus pecados. Pois Copacabana sobrevive.
Seus pecados foram absolvidos, os bares de prostituição são fechados e têm ar-condicionado, cinemas foram comprados pelos evangélicos, enfim, há gente pecando, gente se arrependendo, gente trepando, gente rezando, como talvez sempre tenha existido. A diferença agora é quantitativa: há muita gente.
Os acidentes do réveillon nem sempre servem para alterar as coisas. Já houve uma tragédia, como o naufrágio do Bateau Mouche, e, no entanto, as condições de segurança no mar ainda não são perfeitas.
A idéia de concentrar milhões de pessoas e explodir verdadeiras bombas revestidas de PVC não foi das mais brilhantes.
No entanto é apenas uma metáfora que dramatiza espetacularmente o processo que temos vivido nos últimos anos.
Copacabana nos engana. Os mendigos dormem na porta de luxuosas agências de carros importados, loucos caminham esfarrapados, travestis e prostitutas nos acenam seminus do calçadão.
Tudo isso é apenas um falso terceiro ato, um final para enganar a platéia. Copacabana enlouquece calmamente nas mãos de respeitáveis membros do Rotary Club, de firmas registradas com todos os papéis em dia.
Trata-se de uma história interessante, pois iniciamos comendo a nossa linda natureza e terminamos comendo as próprias construções culturais, com seus canos entupidos, seus vazamentos, suas infiltrações.
Comer uns aos outros talvez tenha sido o que houve de mais inocente nessa história de uma Copacabana que foi amaldiçoada pelos seus pecados carnais.


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