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FERNANDO GABEIRA
O mundo acaba em Copacabana durante as festas de réveillon
Depois de feriados marcados por um grande número
de desastres nas estradas, pensei
que o réveillon seria só festa. Aí,
caíram as grades no estádio do
Vasco e, com 58 feridos, o novo
milênio entrou como uma bomba
pelas ruas de Copacabana.
Moro em Copacabana e posso
dizer de coração: esse espetáculo
anual, considerado uma das
maiores atrações do mundo, está
ficando insustentável, não só no
sentido ecológico, mas por sua
própria capacidade de divertir.
Para começar, é muita gente,
gente demais. Os moradores de
alguns prédios sublocam seus
apartamentos. Num deles, onde
vivia apenas um casal, entraram
40 pessoas dispostas a comer, beber, festejar. Os relatos da moradora do apartamento de baixo
são assustadores.
Imagine um prédio onde você
ouve o barulho da descarga do
banheiro do vizinho. Imagine essa descarga funcionando a todo
vapor, noite adentro. Se os banheiros do apartamento dessem
vazão, tudo bem. Acontece que,
às vezes, você desperta, sai para o
trabalho e vê um um filete de xixi
descendo pelas escadas.
Quarenta pessoas nunca se deslocam em carros, mas, sim, naqueles ônibus de turismo que
atravancam as ruas, sobretudo as
mais estreitas, de onde partem os
carros do Corpo de Bombeiros.
Eles descem com a sirene aberta,
mas, quando sentem algum obstáculo, intensificam o barulho.
A última pessoa que você acha
depois que os turistas são entregues no endereço é o motorista do
ônibus, que veio de Manaus
transportando aquela gente barulhenta e ávida de emoções. Tudo o que ele quer, após estacionar
no Rio, é buscar um bairro bem
distante para descansar e voltar
no dia em que for preciso reconduzi-los ao seu destino.
Atrás do prédio onde ficaram os
40, as crianças se apossando do
elevador para torná-lo um brinquedo, morava um discreto casal
gay. O casal resolveu viajar e alugou o apartamento de dois quartos para 30 pessoas.
Esses dois exemplos mostram
como Copacabana tem sua população bruscamente aumentada
nessa época do ano. Milhões de
pessoas que vêm apenas para se
divertir e voltam ao amanhecer.
Os viajantes europeus que passaram pelo Brasil no século 19
produziram relatos bem vivos de
nossas festas populares. Reclamaram do cheiro da comida, dos líquidos e secreções humanas, enfim, eram arrebatados ou repelidos pela mistura de sensualidade
e sujeira, reportadas em cidades
como Rio e Salvador.
Nem sempre simpatizei com esses relatos, sobretudo depois de ler
"Pureza e Perigo", de Mary Douglas, onde a antropóloga fala da
insegurança que se sente diante
do que nos parece sujo e desorganizado em outras culturas.
Agora, vendo tudo mais de perto, começo a admitir que uma
coisa era o cheiro de dendê, urina
e esperma numa festa popular do
século 19, outra coisa são as festas
do fim do século 20. Em Copacabana, havia mais gente do que a
população brasileira em alguns
momentos da história colonial.
Uma festa com 2 milhões de
pessoas concentradas num só
ponto da cidade provoca inúmeros problemas de segurança.
Os fogos de artifício ficaram
mais sofisticados e poderosos, as
armas, mais populares, as possibilidades de contaminação alimentar aumentaram com a presença de centenas de vendedores
ambulantes não fiscalizados.
Rubem Braga escreveu uma
crônica intitulada "Ai de Ti, Copacabana", na qual o bairro sucumbiria por seus pecados. Pois
Copacabana sobrevive.
Seus pecados foram absolvidos,
os bares de prostituição são fechados e têm ar-condicionado, cinemas foram comprados pelos
evangélicos, enfim, há gente pecando, gente se arrependendo,
gente trepando, gente rezando,
como talvez sempre tenha existido. A diferença agora é quantitativa: há muita gente.
Os acidentes do réveillon nem
sempre servem para alterar as
coisas. Já houve uma tragédia, como o naufrágio do Bateau Mouche, e, no entanto, as condições de
segurança no mar ainda não são
perfeitas.
A idéia de concentrar milhões
de pessoas e explodir verdadeiras
bombas revestidas de PVC não foi
das mais brilhantes.
No entanto é apenas uma metáfora que dramatiza espetacularmente o processo que temos vivido nos últimos anos.
Copacabana nos engana. Os
mendigos dormem na porta de
luxuosas agências de carros importados, loucos caminham esfarrapados, travestis e prostitutas
nos acenam seminus do calçadão.
Tudo isso é apenas um falso terceiro ato, um final para enganar
a platéia. Copacabana enlouquece calmamente nas mãos de respeitáveis membros do Rotary
Club, de firmas registradas com
todos os papéis em dia.
Trata-se de uma história interessante, pois iniciamos comendo
a nossa linda natureza e terminamos comendo as próprias construções culturais, com seus canos
entupidos, seus vazamentos, suas
infiltrações.
Comer uns aos outros talvez tenha sido o que houve de mais inocente nessa história de uma Copacabana que foi amaldiçoada
pelos seus pecados carnais.
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