São Paulo, segunda-feira, 08 de julho de 2002

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FERNANDO GABEIRA

Festa em Brasília refresca até pensamento

Confesso que, em certos momentos, duvidei do sucesso da seleção brasileira; peço desculpas por isso. Encantava-me o time da Argentina, que acabou voltando cedo para casa. Achava a França muito bem treinada e eles não fizeram nenhum gol em toda a Copa do Mundo. Ambos, Argentina e França, continuam no topo do ranking mundial, perdendo apenas para o Brasil. Mas fracassaram na Copa.
No auge da alegria pela conquista do penta, os astros recusaram o carro do Corpo de Bombeiros e desfilaram em um trio elétrico da Ambev. Foram recebidos pela cantora Ivete Sangalo, que vestia uma camiseta da Brahma. Mais uma vez a imagem do que o Brasil tem de melhor era associada a uma droga legal, o álcool.
Os jogadores estavam felizes cantando seu pagode e foram para o Palácio do Planalto, onde Fernando Henrique Cardoso condecorou todos. Duas semanas atrás, o presidente condecorou a autora e o elenco da novela "O Clone". Argumento: prestaram um bom serviço no combate ao abuso de drogas no Brasil.
Não vejo má-fé nesse movimento contraditório. Revela apenas o nível superficial com que esse tema é tratado no Brasil, mesmo entre os que se dizem comprometidos em encarar o "grande problema do nosso século" e outras expressões que fazem a alegria de candidatos em campanha.
Na mídia houve apenas uma discussão entre especialistas. Estavam preocupados com a imagem da Ambev, que, segundo eles, deveria apenas explorar o tema em anúncios, nunca patrocinar o trio elétrico. Argumento: os jogadores poderiam se atrasar ou desistir no meio do trajeto, e o desgaste seria da empresa.
O abuso do álcool tem um papel devastador no Brasil. Acidentes de trânsito, faltas no trabalho, doenças crônicas e crimes sobrecarregam as dispendiosas UTIs de hospitais públicos; as sequelas vão se acumulando e têm grande repercussão econômica.
A vinculação da imagem do Brasil vitorioso a uma grande produtora de bebidas é um sinal de que o país ainda vive uma fase confusa. A própria escolha da TV Globo de dramatizar ao máximo o uso de drogas é um caminho que já foi abandonado até pelos programas policiais nas escolas norte-americanas.
A dramatização do uso de drogas proibidas e a colocação da marca dos produtores de álcool no Olimpo nacional são faces da mesma moeda. Elas até ajudam a compreender por que alguns locutores de rádio gostariam de me mandar para a cadeia por defender a legalização das drogas.
O rótulo de legal, na cabeça deles, daria o direito de as drogas estarem nos anúncios de TV, patrocinarem equipes esportivas, convidarem intelectuais para produzir textos sobre a excelência de cada uma. Como se na comemoração do hexa pudéssemos vir a ter o "cover" do Bob Marley recebendo os jogadores no lugar de Ivete Sangalo e, no lugar da Ambev, um cartaz da Manga Rosa.
O interessante é que às vezes telefona um repórter com a pergunta: "Vamos vencer a guerra contra o tráfico?". É outra expressão que talvez não favoreça esse processo. Guerras estimulam o consumo de drogas -vide Vietnã.
A intenção deste texto não é acusar a Ambev, seus maravilhosos publicitários nem a Ivete Sangalo ou as meninas que mexem suas bundinhas com uma lata de cerveja na mão. Nem questionar os dois generais que cuidam do combate ao abuso de drogas, Cardoso e Uchôa -um, espiritualista com capacidade de cura pelo toque, o outro, especializado em discos voadores. São excelentes figuras humanas.
Mas, neste mundo de radialistas cuspindo fogo e pastores brandindo a Bíblia, não deixa de ser curioso vê-los em êxtase diante do trio elétrico da Ambev.
O episódio me lembrou um grupo que fazia ponto num botequim da rua Barão da Torre. Quando eu passava de bicicleta, sempre gritavam "maconheiro". Resolvi, um dia, voltar para ver suas caras, talvez protestar. Estavam tão bêbados que acabei seguindo o meu próprio caminho, gargalhando até alcançar a praia.



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