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FERNANDO GABEIRA
Festa em Brasília refresca até pensamento
Confesso que, em certos
momentos, duvidei do sucesso da seleção brasileira; peço desculpas por isso. Encantava-me o
time da Argentina, que acabou
voltando cedo para casa. Achava
a França muito bem treinada e
eles não fizeram nenhum gol em
toda a Copa do Mundo. Ambos,
Argentina e França, continuam
no topo do ranking mundial, perdendo apenas para o Brasil. Mas
fracassaram na Copa.
No auge da alegria pela conquista do penta, os astros recusaram o carro do Corpo de Bombeiros e desfilaram em um trio elétrico da Ambev. Foram recebidos
pela cantora Ivete Sangalo, que
vestia uma camiseta da Brahma.
Mais uma vez a imagem do que o
Brasil tem de melhor era associada a uma droga legal, o álcool.
Os jogadores estavam felizes
cantando seu pagode e foram para o Palácio do Planalto, onde
Fernando Henrique Cardoso condecorou todos. Duas semanas
atrás, o presidente condecorou a
autora e o elenco da novela "O
Clone". Argumento: prestaram
um bom serviço no combate ao
abuso de drogas no Brasil.
Não vejo má-fé nesse movimento contraditório. Revela apenas o
nível superficial com que esse tema é tratado no Brasil, mesmo
entre os que se dizem comprometidos em encarar o "grande problema do nosso século" e outras
expressões que fazem a alegria de
candidatos em campanha.
Na mídia houve apenas uma
discussão entre especialistas. Estavam preocupados com a imagem da Ambev, que, segundo eles,
deveria apenas explorar o tema
em anúncios, nunca patrocinar o
trio elétrico. Argumento: os jogadores poderiam se atrasar ou desistir no meio do trajeto, e o desgaste seria da empresa.
O abuso do álcool tem um papel
devastador no Brasil. Acidentes
de trânsito, faltas no trabalho,
doenças crônicas e crimes sobrecarregam as dispendiosas UTIs de
hospitais públicos; as sequelas
vão se acumulando e têm grande
repercussão econômica.
A vinculação da imagem do
Brasil vitorioso a uma grande
produtora de bebidas é um sinal
de que o país ainda vive uma fase
confusa. A própria escolha da TV
Globo de dramatizar ao máximo
o uso de drogas é um caminho
que já foi abandonado até pelos
programas policiais nas escolas
norte-americanas.
A dramatização do uso de drogas proibidas e a colocação da
marca dos produtores de álcool
no Olimpo nacional são faces da
mesma moeda. Elas até ajudam a
compreender por que alguns locutores de rádio gostariam de me
mandar para a cadeia por defender a legalização das drogas.
O rótulo de legal, na cabeça deles, daria o direito de as drogas estarem nos anúncios de TV, patrocinarem equipes esportivas, convidarem intelectuais para produzir textos sobre a excelência de cada uma. Como se na comemoração do hexa pudéssemos vir a ter
o "cover" do Bob Marley recebendo os jogadores no lugar de Ivete
Sangalo e, no lugar da Ambev,
um cartaz da Manga Rosa.
O interessante é que às vezes telefona um repórter com a pergunta: "Vamos vencer a guerra contra o tráfico?". É outra expressão
que talvez não favoreça esse processo. Guerras estimulam o consumo de drogas -vide Vietnã.
A intenção deste texto não é
acusar a Ambev, seus maravilhosos publicitários nem a Ivete Sangalo ou as meninas que mexem
suas bundinhas com uma lata de
cerveja na mão. Nem questionar
os dois generais que cuidam do
combate ao abuso de drogas, Cardoso e Uchôa -um, espiritualista
com capacidade de cura pelo toque, o outro, especializado em
discos voadores. São excelentes figuras humanas.
Mas, neste mundo de radialistas cuspindo fogo e pastores brandindo a Bíblia, não deixa de ser
curioso vê-los em êxtase diante do
trio elétrico da Ambev.
O episódio me lembrou um grupo que fazia ponto num botequim
da rua Barão da Torre. Quando
eu passava de bicicleta, sempre
gritavam "maconheiro". Resolvi,
um dia, voltar para ver suas caras, talvez protestar. Estavam tão
bêbados que acabei seguindo o
meu próprio caminho, gargalhando até alcançar a praia.
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