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São Paulo, segunda-feira, 10 de março de 2003

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FERNANDO GABEIRA

Crônica de uma cidade ocupada

De vez em quando o Exército ocupa as ruas do Rio. Em 92, com a conferência sobre ambiente, a presença até foi suave. Muitos dizem que não houve crime porque o Exército estava por perto. Depois vieram novas intervenções. Posso até descrever a dinâmica. Os traficantes aprontam, editorialistas protestam, chovem cartas de leitores, programas radiofônicos se inflamam, deputados discursam, o Estado pede, o governo federal aceita.
Como é bom estar deitado de frente para a amendoeira e ouvir na TV que o Exército ocupou os principais pontos estratégicos da cidade. Isso dá a maior tranquilidade. Basta supor que os traficantes tenham cursado a mesma escola militar dos nossos generais e diante desse movimento de tropas desistam de ocupar os pontos estratégicos, definidos na clássica doutrina de guerra.
Diante disso, devem recuar para o "business as usual": preto e branco, maconha e cocaína. Mais estimulante é ver o esquadrão antibombas dar uma geral nos carros de escolas de samba e nada encontrar. Mostra que os traficantes desistiram de mandar para os ares carros alegóricos que eles financiaram e poupar amantes e familiares que devem estar sambando no meio da multidão.
O governo faz bem em tranquilizar a família e seus clássicos defensores. Um copo d'água com açúcar é sempre bom, desde que não ministrado como se fosse o grande remédio. O problema é que o aparato destinado a essa grande operação psicológica nem sempre funciona do mesmo jeito. Depende das cabeças. Quem examinar as estatísticas verá que o número de assassinatos cresceu, apesar do Exército.
E o pior, verá uma repetição de incidentes do passado, como a morte do professor de inglês Frederico Branco Faria, abatido a tiros por militares. Há contradições entre o que dizem Exército e PM, mas a versão é que ele morreu porque não parou numa barreira. Poderiam ter seguido o carro, alvejado os pneus, mas preferiram liquidar o motorista. E se fosse um homem-bomba ou quisesse apenas matar alguns soldados naquela noite em Inhaúma?
Se estivéssemos em Israel, uma versão desse tipo teria mais chance de convencer. Entre o Hamas e o Comando Vermelho existem diferenças que mesmo um sedentário jornalista pode compreender. Todas essas nuances conspiram contra o clima de guerra, obrigam a colocar em cena um instrumento sem poder imediato de confortar grandes massas e seus defensores: a inteligência.
Quem viu o filme "A Batalha de Argel" deve lembrar-se do desamparo dos soldados franceses diante de uma forma de luta que desconheciam. O coronel passava um filme mostrando como era inútil pedir documentos na rua, pois os guerrilheiros argelinos eram sempre os mais bem-documentados. Mesmo com toda a sabedoria do coronel, a guerra foi perdida. Mas teria sido muito pior se não a utilizassem.
O Brasil, com essas idas e vindas, caminha celeremente para uma guerra contra as drogas. No ultimo mês, em Mérida, no México, houve um congresso dos defensores de uma política alternativa. Fiquei impressionado com um grupo de policiais do FBI que defendem a legalização e condenam a política dos EUA. Sua tese é que a guerra contra as drogas muito rapidamente se transforma em guerra contra o povo. As cadeias já estão repletas de "soldados inimigos" aqui e nos EUA. São jovens negros, de cabeça raspada, short, Havaianas, vapores, aviões, olheiros alijados do mercado de trabalho convencional.
No momento em que se denuncia a insensatez de uma guerra contra o Iraque, é hora de afastar a tentação de uma guerra contra as drogas. Guerrear uma substância ou um conjunto de substâncias é um pouco como acreditar que se faz mal a uma pessoa espetando agulhas numa boneca.
Quem se elege com votos majoritários tem de pôr o Exército na rua e desenvolver políticas repressivas porque isso é o que os eleitores querem. A submissão à vontade da maioria não significa falta de margem de manobra. Tanto o papel da inteligência e dos estudos especializados no combate ao tráfico de drogas como a redução de danos em escala social são políticas de transição aceitáveis, mesmo com o bombardeio dos radialistas que querem sangue .
Podem até continuar acreditando que os traficantes vão explodir carros alegóricos, ocupar o aeroporto Santos Dumont ou usar homens-bomba para matar militares. Isso conforta o povo, dá brilho ao olhar dos âncoras da TV Globo. Mas o Carnaval é apenas um momento de sonho, para tudo acabar na quarta-feira.



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