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FERNANDO GABEIRA
Crônica de uma cidade ocupada
De vez em quando o Exército ocupa as ruas do Rio.
Em 92, com a conferência sobre
ambiente, a presença até foi suave. Muitos dizem que não houve
crime porque o Exército estava
por perto. Depois vieram novas
intervenções. Posso até descrever
a dinâmica. Os traficantes aprontam, editorialistas protestam,
chovem cartas de leitores, programas radiofônicos se inflamam,
deputados discursam, o Estado
pede, o governo federal aceita.
Como é bom estar deitado de
frente para a amendoeira e ouvir
na TV que o Exército ocupou os
principais pontos estratégicos da
cidade. Isso dá a maior tranquilidade. Basta supor que os traficantes tenham cursado a mesma escola militar dos nossos generais e
diante desse movimento de tropas
desistam de ocupar os pontos estratégicos, definidos na clássica
doutrina de guerra.
Diante disso, devem recuar para o "business as usual": preto e
branco, maconha e cocaína. Mais
estimulante é ver o esquadrão antibombas dar uma geral nos carros de escolas de samba e nada
encontrar. Mostra que os traficantes desistiram de mandar para os ares carros alegóricos que
eles financiaram e poupar amantes e familiares que devem estar
sambando no meio da multidão.
O governo faz bem em tranquilizar a família e seus clássicos defensores. Um copo d'água com
açúcar é sempre bom, desde que
não ministrado como se fosse o
grande remédio. O problema é
que o aparato destinado a essa
grande operação psicológica nem
sempre funciona do mesmo jeito.
Depende das cabeças. Quem examinar as estatísticas verá que o
número de assassinatos cresceu,
apesar do Exército.
E o pior, verá uma repetição de
incidentes do passado, como a
morte do professor de inglês Frederico Branco Faria, abatido a tiros por militares. Há contradições
entre o que dizem Exército e PM,
mas a versão é que ele morreu
porque não parou numa barreira. Poderiam ter seguido o carro,
alvejado os pneus, mas preferiram liquidar o motorista. E se fosse um homem-bomba ou quisesse
apenas matar alguns soldados
naquela noite em Inhaúma?
Se estivéssemos em Israel, uma
versão desse tipo teria mais chance de convencer. Entre o Hamas e
o Comando Vermelho existem diferenças que mesmo um sedentário jornalista pode compreender.
Todas essas nuances conspiram
contra o clima de guerra, obrigam a colocar em cena um instrumento sem poder imediato de
confortar grandes massas e seus
defensores: a inteligência.
Quem viu o filme "A Batalha de
Argel" deve lembrar-se do desamparo dos soldados franceses diante de uma forma de luta que desconheciam. O coronel passava
um filme mostrando como era
inútil pedir documentos na rua,
pois os guerrilheiros argelinos
eram sempre os mais bem-documentados. Mesmo com toda a sabedoria do coronel, a guerra foi
perdida. Mas teria sido muito
pior se não a utilizassem.
O Brasil, com essas idas e vindas, caminha celeremente para
uma guerra contra as drogas. No
ultimo mês, em Mérida, no México, houve um congresso dos defensores de uma política alternativa. Fiquei impressionado com
um grupo de policiais do FBI que
defendem a legalização e condenam a política dos EUA. Sua tese
é que a guerra contra as drogas
muito rapidamente se transforma em guerra contra o povo. As
cadeias já estão repletas de "soldados inimigos" aqui e nos EUA.
São jovens negros, de cabeça raspada, short, Havaianas, vapores,
aviões, olheiros alijados do mercado de trabalho convencional.
No momento em que se denuncia a insensatez de uma guerra
contra o Iraque, é hora de afastar
a tentação de uma guerra contra
as drogas. Guerrear uma substância ou um conjunto de substâncias é um pouco como acreditar
que se faz mal a uma pessoa espetando agulhas numa boneca.
Quem se elege com votos majoritários tem de pôr o Exército na
rua e desenvolver políticas repressivas porque isso é o que os eleitores querem. A submissão à vontade da maioria não significa falta
de margem de manobra. Tanto o
papel da inteligência e dos estudos especializados no combate ao
tráfico de drogas como a redução
de danos em escala social são políticas de transição aceitáveis,
mesmo com o bombardeio dos radialistas que querem sangue .
Podem até continuar acreditando que os traficantes vão explodir carros alegóricos, ocupar o
aeroporto Santos Dumont ou
usar homens-bomba para matar
militares. Isso conforta o povo, dá
brilho ao olhar dos âncoras da TV
Globo. Mas o Carnaval é apenas
um momento de sonho, para tudo
acabar na quarta-feira.
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