São Paulo, Segunda-feira, 10 de Julho de 2000
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TIGRE CELTA
O idioma, pouco falado no país, é uma mistura do irlandês com o inglês, mas com variações no vocabulário
Irlandês também fala "hiberno english"

GUILHERME CUCHIERATO
DA REPORTAGEM LOCAL

O turista que chegar à Irlanda esperando ouvir uma versão muito próxima do inglês britânico, principalmente se estiver habituado à pronúncia dessa língua na América do Norte, poderá se surpreender. E a surpresa poderá ser ainda maior se esse visitante vier a saber que a língua que lhe causa estranheza é o próprio inglês.
Trata-se do seu primeiro contato com o "hiberno english", nome do dialeto irlandês originado na língua inglesa.
Na Irlanda, o habitante local usa e fala o inglês de um modo próprio, que se faz notar marcadamente no vocabulário, nas expressões idiomáticas e na pronúncia. Segundo Munira Mutran, professora de literatura anglo-irlandesa da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Associação Brasileira de Estudos Irlandeses (Abei), esses elementos retratam a história política, cultural e linguística de duas nações, a Irlanda e a Inglaterra.
O nome dessa língua deriva de "Hibernia", antigo significado de "Irlanda" em latim. Nesse país, o "hiberno english" é o nome da língua de uso cotidiano, uma mistura de "irish" -irlandês- e inglês, a outra língua oficial. Há duas características principais que a distinguem do inglês.
A primeira é que se trata de uma espécie de dialeto híbrido, que "toma emprestado" do irlandês diversas palavras e expressões de modo direto ou por meio de formas anglicizadas.
A palavra "galore", por exemplo, que, em português, significa "em abundância", é uma anglicização do termo irlandês "go leor", que significa -igualmente- "em abundância". Essa palavra hoje faz parte do inglês padrão, mas há diversos casos em que o "hiberno english" permanece unicamente na Irlanda.
A segunda característica é que o "hiberno english" abrange palavras obsoletas no inglês padrão, mas que ainda têm uso frequente na Irlanda. São palavras como "oxter", que significa, em português, "axila" e, em inglês, "armpit", que ainda são usadas na Irlanda, mas que deixaram de fazer parte do vocabulário do inglês padrão por volta de 1800.
Segundo Munira, outra diferença entre o "hiberno english" e o inglês padrão é que, no primeiro, a ênfase é dada pela posição que a palavra ocupa na frase, ao contrário do que ocorre no inglês. "Em inglês, diz-se "are you going to the church?" (você vai à igreja?). Em "hiberno english", seria perguntado "is it to the church you are going?" (é à igreja que você vai?), que tem outro significado em termos de ênfase", diz.
Mas esse tipo de detalhe linguístico não deve preocupar o turista, segundo a professora. "Certamente será em inglês que os irlandeses irão lhe falar."

O inglês na Irlanda
O inglês tem sido falado na Irlanda desde o século 12, mas não tão amplamente como hoje. A primeira exposição do irlandês ao inglês resultou de uma invasão comandada pelo rei Henrique 2º para unir a Irlanda à Inglaterra, "sob fundamentos espirituais", a mando de Adriano 4º -o único papa de origem inglesa da história, que pontificou de 1154 a 1159.
No final daquele século, havia quatro línguas em curso na Irlanda. Além do normando francês e do inglês medieval, falados respectivamente pelos comandantes das forças invasoras e seus seguidores, a população local falava irlandês, e os clérigos, latim.
Em pouco mais de cem anos, no entanto, o normando francês desapareceu, não sem antes deixar algumas contribuições para o vocabulário local. A palavra francesa "toaille", que significa "toalha" em português e "towel" em inglês, permaneceu no léxico irlandês como "tuáille".
Se o normando francês sucumbiu com o passar dos anos, o mesmo não ocorreu com o inglês, embora essa língua tenha sentido o poder do irlandês.
No século 14, até os invasores começaram a usá-lo.
O ressurgimento do irlandês levou as autoridades inglesas a enviarem Lionel Plantagenet (1338-1369), duque de Clarence e filho de Eduardo 3º, para presidir uma assembléia na cidade irlandesa de Kilkenny.
Nessa ocasião, firmou-se o Estatuto de Kilkenny, documento elaborado para impedir que a elite dominante adotasse costumes irlandeses e, principalmente, a língua irlandesa. O estatuto provou-se inútil. No século 15, o inglês ficou restrito a poucas cidades.
No século seguinte, entretanto, essa tendência se inverteu, graças à adoção da política agrária ocorrida no país. O principal efeito das culturas agrícolas foi que, pela primeira vez, falantes nativos do inglês fixaram-se em localidades exclusivamente irlando-falantes.
Era necessário, então, que as pessoas aprendessem inglês não por diversão ou para compreenderem a legislação vigente, mas por praticidade.
O prestígio era outro elemento considerado pelos que adotaram o inglês, porque esse idioma estava proximamente ligado à imagem da aristocracia.
Esse elemento encorajou pessoas ambiciosas que falavam irlandês a aprender os fundamentos do inglês, que possibilitaria ascensão pessoal e profissional.
O aprendizado do inglês foi um processo difícil e a forma do idioma desenvolvida por essas pessoas parecia ser uma mistura de inglês com irlandês no que diz respeito à pronúncia, ao vocabulário e à sintaxe. É nesse momento que pode ser identificada a origem do "hiberno english".


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