São Paulo, segunda, 11 de maio de 1998

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QUALQUER VIAGEM
Havana, Hemingway e o almoço com 12 daiquiris duplos

DAVID DREW ZINGG
em Sampa

"Do mesmo modo que uma mulher se torna prostituta, comecei fazendo para agradar a mim mesmo; mais tarde, continuei fazendo para agradar a meus amigos e, finalmente, passei a fazer pelo dinheiro." Ferenc Molnar, explicando como se tornou escritor

"As pessoas que escrevem ficção, se não o fizessem, poderiam ter feito sucesso como mentirosas."
Ernest Hemingway

Recordo-me vagamente, em meio à deliciosa névoa provocada pelo scotch de malte único, envelhecido 70 anos, da senhora Rockefeller, de ter falado com Che Guevara (depois do jantar impecável da senhora Rockefeller) sobre outro gringo que adorava Cuba -Ernest Hemingway.
Que eu saiba, Hemingway passou por Cuba pela primeira vez em 1928.
Estava a bordo do navio a vapor inglês Orita, vindo de La Rochelle, França, e indo para Key West. O escritor, então com 29 anos, estava acompanhado por sua segunda mulher, Pauline Pfeiffer.
Concluíra recentemente seu primeiro romance, "The Sun Also Rises" e estava à procura de um lugar para viver e escrever. Passou apenas dois dias na ilha, e então seu navio partiu para Key West.
Três anos mais tarde, Hemingway retornou a Cuba numa pescaria, acompanhado de seu amigo Joe Russel.
Quando Russel não estava procurando peixes para "Papa", estava arrumando caixas do saboroso rum cubano para contrabandear para a Flórida, onde a bebida, muito convenientemente, havia sido posta na ilegalidade pela chamada Lei Seca.
Hemingway se apegou a Cuba com todo o entusiasmo de um pescador que descobria que o mar do Caribe parecia estar repleto de peixes de espírito combativo, todos magicamente atraídos para o seu barco, o Pilar.
O escritor alugou um quarto num hotel de nome ambíguo: Ambos Mundos (para ter uma idéia do clima, pense naqueles hotéis de viajantes do século 19 nas proximidades da estação da Luz, em São Paulo) -com uma vista gratuita para o ensolarado porto de Havana.
Era a primavera quente e úmida de 1932. Hemingway ficava fechado no quarto de seu hotel tropical, na Calle Obispo, literalmente pingando suor sobre o manuscrito de "Death in the Afternoon", sua homenagem às touradas.
Alguns anos mais tarde, Hemingway diria a um amigo meu, George Plimpton, uma das frases sucintas que eram sua marca registrada: "O hotel Ambos Mundos era um bom lugar para escrever", disse, simplesmente.
Era uma boa afirmação hemingwayana. Curta, resumida e econômica (em palavras).
Hemingway seguia um cronograma de trabalho que me parece perfeitamente adequado. Ele acordava cedo e já se dedicava à tarefa de cada dia, que consistia em escrever uma página de texto que pudesse considerar aceitável.
Trata-se de uma coisa muito mais difícil de fazer do que aparenta, especialmente se você, como Hemingway, tem a sensação secreta de que foi posto aqui na Terra para reformular totalmente a maneira como se faz literatura.
Essa tarefa se torna imensamente mais complexa se você ainda é abençoado (ou amaldiçoado?) por um enorme senso de autocrítica, além da consciência necessária para dar ouvidos a ela.
Depois de uma dura manhã de trabalho, "Papa" precisava de um descanso.
Ele descia a estreita Calle Obispo, uma rua quase medieval, sendo esbarrado e esbarrando nas multidões de camelôs cubanos de voz alta, até ver-se diante da porta de um de seus bares prediletos na ilha, o Floridita.
Trata-se de um dos bares mais antigos do mundo -data do início do século.
É mantido, com cuidados meticulosos, pelo Partido Comunista Cubano, visando principalmente extrair moeda forte dos turistas.
Por pura coincidência, os membros da liderança comunista cubana frequentemente jantam no local, acompanhados de suas simpáticas namoradas, comunistas ou não.
Quando tio Dave esteve lá, há mais ou menos dois anos, havia um barman de 81 anos que afirmava ter servido Hemingway na década de 30. Acreditei no que ele dizia.
O daiquiri que ele me serviu naquele dia foi o melhor que já tomei em toda a minha vida.
O lugar é um fator importante para a percepção que temos da qualidade de uma bebida.
Não existe um martíni comparável ao martíni seco como o deserto que você degusta no luxo convincente do bar do Plaza Hotel, em Nova York. E também não existe daiquiri igual ao do Floridita.
Hemingway é melhor?
Que Hemingway tenha sido um homem melhor do que eu no departamento de letras, Joãozinho, é fato que não deixa lugar para dúvidas.
Que ele tenha sido um homem melhor do que o tio Dave quando se apoiava sobre um balcão de bar, também parece ser verdade.
Testemunhas oculares descrevem como ele se descontraía no Floridita, depois de uma manhã de dilacerar a consciência passada diante de seu livro. Aparentemente, "Papa" conseguia ingerir quantidades astronômicas de bebidas cubanas relaxantes -coisa como 12 daiquiris duplos, secos, sem açúcar.
Não surpreende que ele transpirasse com cada sílaba que arrastava para o papel.
Na última vez em que estive naquela maravilha decadente que é a Velha Havana, dei uma passada, naturalmente, pelo hotel Ambos Mundos, ansioso por ver o quarto no qual Hemingway viveu e trabalhou.
Che havia me dito que Fidel Castro conhecera Hemingway e havia lido todos os seus livros, alguns deles várias vezes.
Não sei bem por quê, mas tive a impressão de que a garota na velha mesa da recepção do Ambos Mundos não o conhecera e não lera nada.
Eu disse a ela que queria subir até o quarto de Hemingway. Ela deu uma olhada no livro de hóspedes e me informou que não havia nenhum senhor Hemingway hospedado no hotel.
"Você não entendeu", expliquei. "Ele já está morto."
Ela me olhou como se estivesse pensando um jeito de ligar para o hospício para virem me buscar, sem me alertar para o fato de que iria ganhar uma viagem de graça até o manicômio da cidade.
Falou em voz tranquila, reconfortante e, sobretudo, muito lógica:
"Se ele já está morto, por que o senhor quer falar com ele?"


Tradução de Clara Allain



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