São Paulo, segunda-feira, 12 de março de 2001

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FERNANDO GABEIRA

O museu Guggenheim atravessado na garganta

No princípio, a idéia da vinda do museu Guggenheim para o Rio parecia sem contra-indicação. Havia um projeto de revitalização da área do cais do porto, como se fez em Sydney, Austrália. Além disso, a presença do museu iria funcionar como uma espécie de catalisador, atraindo outros investimentos.
Junto com a revitalização do cais do porto estaria sendo articulado um outro importante projeto de grandes dimensões. Trata-se da recuperação da baía de Guanabara, que, no seu conjunto, é um investimento de US$ 800 milhões, portanto um dos projetos mais caros do país.
Seria interessante para o turismo no Rio? A resposta é sim. A julgar pela experiência de Bilbao, na Espanha, onde se construiu um Guggenheim, que funciona como uma grande atração cultural para os turistas.
Seria esse empreendimento prejudicial aos outros museus já instalados? A experiência de Bilbao também indica que os outros museus não foram prejudicados e que, ao contrário, acabaram ainda se beneficiando com o aumento do fluxo turístico.
Até a possível rivalidade entre Rio, Salvador e Recife poderia ser atenuada, já que existia a possibilidade de construir unidades menores nas cidades interessadas. Portanto o quadro era absolutamente azul.
No entanto novas nuances foram se acrescentando a ele. Descobriu-se que a construção do museu representaria um desembolso de quase R$ 300 milhões, sem considerar as obras de infra-estrutura necessárias para revitalizar a área. Só a intermediação da fundação que organizou a "Mostra do Redescobrimento" cobraria US$ 600 mil pelo seu trabalho.
Faltou computar um dado: o Guggenheim de Bilbao foi construído com dinheiro do País Basco e da prefeitura. O Rio não tem esse dinheiro e precisa trabalhar uma saída muito mais complexa e demorada: a parceria com a iniciativa privada.
Com o tempo, notou-se também que faltou uma discussão fundamental: qual a importância da vinda do museu Guggenheim para a cultura brasileira? Que tipo de agenda seria adotada pela instituição?
Os turistas que aportassem no Rio se veriam diante de um monumento à arte universal, uma introdução aos grandes pintores e escultores norte-americanos, ou estariam entrando também numa espécie de fronteira estética nacional?
Pode ser que essa discussão já tenha sido travada nos bastidores, mas a verdade é que pouco se sabe sobre ela e, no entanto, poderia ser um momento privilegiado, pois é um caso de globalização cultural. E, como em qualquer outro caso de globalização, ainda que a tendência correta seja de receptividade, é necessário definir margens de soberania.
Embora todos digam que a globalização é um movimento que tende a aniquilar as culturas nacionais e a fortalecer apenas a hegemonia norte-americana, já avassaladora nos campos político e econômico, sempre contestei essa tese.
A cultura brasileira é uma cultura de resistência, que vai sobrevivendo e se adaptando às novas situações. Pelo menos tem sido assim até agora.
Tive a oportunidade de discutir o tema quando estávamos para decidir a abertura da imprensa brasileira para o capital estrangeiro.
Embora isso possa significar novos pacotes culturais enlatados para o público, não terá a possibilidade de reduzir, por exemplo, a importância da música brasileira, que não só tem uma aceitação universal como tem seu mercado interno garantido.
Tanto nesse caso do Guggenheim como nos outros, é preciso afastar-se das visões extremadas, da xenofobia e do deslumbramento com a globalização. Esse caminho do meio nem sempre é fácil de ser encontrado e corre o risco de ser bombardeado pelos extremos.
Tudo talvez fique mais claro se pararmos para discutir de que jeito o Brasil deveria se integrar, qual a margem de liberdade que ainda temos, como vamos assegurá-la e ampliá-la, sem negar esse poderoso processo histórico.
Nosso programa de combate à Aids é exemplar, mas para ser executado precisa se tornar mais barato, produzindo remédios aqui. A pressão norte-americana será forte não apenas no caso brasileiro, mas também nos da Índia e da África do Sul. Querem receber royalties. Uma situação típica: os royalties ou a vida?
É interessante como discutimos pouco nossa maneira de estar no mundo globalizado. É um grande problema sepultado pelos escândalos políticos, também importante como forma de controle social sobre as autoridades.
O diabo é que, enquanto lavamos nossa roupa suja, o processo de globalização avança. Corremos o risco de termos políticos purificados do mal da corrupção, mas totalmente inúteis diante de uma história já escrita pelas forças cegas do mercado.


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