São Paulo, segunda-feira, 12 de julho de 2004

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GASTRONOMIA

Carli lembra origens e fala da dificuldade de criar, em 93/94, um restaurante de luxo no país

Chef destampa a receita da sua vida

SILVIO CIOFFI
EDITOR DE TURISMO

Francesco Carli é todo feito de memórias -afetivas e culinárias. Acaba de completar 43 anos e começou a cozinhar muito criança, espiando a avó preparar a marmita do avô. Italiano da cidade vêneta de Asiago e chef do sofisticado Cipriani do Copacabana Palace Hotel desde fevereiro de 1994, quando o restaurante foi aberto no Rio, trabalhou no célebre hotel Cipriani & Pallazzo Vendramin, de Veneza. Leia a seguir trechos da entrevista exclusiva, e de dar água na boca, que ele deu à Folha.

ORIGENS - "Tomei gosto pela cozinha ainda menino. Meu avô Angelo era pedreiro e saía cedinho para trabalhar. Ele gostava de comer bem, mas um prato único [ao contrário da tradição italiana de comer dois pratos]. Numa época, ele trabalhou construindo um hospital, que era até perto da nossa casa, e eu ia lá com minha avó, levar a comida fresquinha. Acabava comendo com ele, embora minha avó reclamasse. Mas foi assim que tudo começou: via a minha avó Maria Carli cozinhar, fazer a marmita do vovô - e ficava maravilhado. Morei com eles até fazer 13 anos. Ele trabalhou duro até os 75 anos. Levantava cedo, tomava uma xícara de café, um copo de vinho e ia para o trabalho. No domingo ele não trabalhava, aí minha avó fazia banquete. Eles eram tudo para mim."

PASSADO - "Antes de casar com a minha avó, meu avô viveu na Austrália. Acabou voltando para a Itália, chamado pela família. Quando eles casaram, ele tinha 42 anos, ela apenas 23. Ele era bonitão, e minha avó dizia que só descobriu a idade dele no cartório. Os amigos dele, diziam, ficaram ricos lá na Austrália. E eu, que adotei o Brasil, também sempre tive vontade de visitar a Oceania, mas ainda não cheguei lá. Falando ainda das comidas da minha avó, no inverno, algumas vezes ela fazia arenque, que não era um peixe chique então. Antigamente todas as famílias tinham um porco -e quantas coisas se podia fazer com ele, incluindo embutidos e até tortas de sangue! E, quando eu era menino, todo mundo tinha a sua pequena horta, plantava milho, se virava. No outono, era época da caça da codorna, normalmente assada com sálvia e toucinho."

ORIGEM - "Minha cidadezinha, Asiago, fica num planalto, a 1.000 m de altitude, perto de Cortina d'Ampezzo. Nos anos 50 e 60, o local foi uma cidade turística no alto da montanha, nas Pequenas Dolomiti, e lá se exploravam as temporadas de verão e de inverno. Sempre que vou lá, dou um jeito de ir na época do esqui, pois sou amante desse esporte."

INGREDIENTES - "Ao contrário do que se pensa, os italianos têm uma grande tradição em utilizar o feijão. Na salada, na sopa, de todo jeito, feijão-branco, muito usado nas saladas no verão, mas também feijão rajado. As sopas de feijão do Vêneto já são mais pesadas, próprias para o inverno, como também o "fagioli all'uccelletto", feito com carne de porco."

À MODA DO CHEF - "Acho que sempre vai haver espaço para produtos mais artesanais, mesmo que haja avanço do transgênico. Sempre haverá qualidade em contraposição à quantidade. E também é importante buscar a inovação: você já provou o minicreme brulée de foie gras com pedacinhos de ragu de pêra cozida em cima? Minha comida tem acento veneziano, mas é italiana, a um só tempo tradicional e contemporânea. No menu degustação, coloquei um prato tailandês que adoro: arroz frito com frutos do mar, ovo, pimenta malagueta, salsinha, cebola pouco frita e abacaxi fresco picadinho por cima."

CIPRIANI/RIO - "O início, abrindo o restaurante no Rio, foi difícil. Pesquisamos para achar produtos adequados à cozinha do Cipriani. Quando cheguei, em 1993, para abrir o restaurante, era complicado achar ingredientes. Aí veio o Plano Real, abriu o mercado, apareceram coisas importadas e, depois, os produtos brasileiros melhoraram também. Com a desvalorização do real, tudo subiu de preço, mas os ingredientes passaram a existir. O peito de pato brasileiro tem uma qualidade bem próxima a do magret francês; idem o foie gras, que não é idêntico na textura, é mais granuloso, mas tem sabor adequado."

CIPRIANI NO MUNDO - "Além do Cipriani aqui no Copa, há outro, no Lapa Palace, em Lisboa, hotel que também pertence ao grupo Orient-Express, capitaneado pelo gerente-geral Sandro Fabris, que ajudou a abrir o restaurante aqui no Rio. Originalmente o dono do hotel Cipriani numa ilha de Veneza era o dono do Harry's Bar, próximo à praça San Marco, onde foram criados o carpaccio, certamente uma grande invenção gastronômica, e o drinque bellini, de espumante seco e pêssego, que ainda fazemos aqui -quando encontramos bom pêssego fresco."

VENEZA - "Tenho a sorte de ter ficado hospedado no hotel Cipriani de Veneza algumas vezes, pois sou amigo do mítico diretor Natale Rusconi e do chef Renato Piccolotto, craques do setor. Mas vou também aos botecos, os "baccari", em que se bebe uma taça de vinho branco, lá chamado em dialeto de "ombra", pois se bebia na sombra do campanário da basílica de San Marco. Gosto muito daquelas comidas de lá, o "baccalà mantecato", feito com bacalhau (veja a receita ao lado), também a polenta -na Itália se diz que os habitantes do norte são "polentoni", porque comem polenta de todo jeito: mole ou dura, com farinha de milho mais grossa ou mais fina. Sobretudo em Veneza, onde há muitos pratos de peixe, a polenta é feita com milho branco, que é mais delicado. Nos outros lugares do norte da Itália, a polenta amarela, com lingüiça, é bastante popular. Até nhoque de polenta faziam nos tempos antigos, quando faltava pão. No Vêneto, mar e montanha são próximos. Mesmo o bacalhau, que hoje é caro, não era naquela época. Idem o arenque, que hoje é chique, mas que estava no repertório das comidas da minha avó. Aqueles minipolvos que lá chamam de "moscardini", tão saborosos, cozidos na água e temperados com azeite e salsinha, são coisas que só se encontram lá, com um sabor forte e característico. Sabe, eu adoro cozinhar, ir ao mercado de peixe. E, quando estou lá, adoro acompanhar as refeições com um vinho branco frutado. Mas a riqueza do Vêneto à mesa não termina aí: as sopas, os risotos, as saladas."


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