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GASTRONOMIA
Carli lembra origens e fala da dificuldade de criar, em 93/94, um restaurante de luxo no país
Chef destampa a receita da sua vida
SILVIO CIOFFI
EDITOR DE TURISMO
Francesco Carli é todo feito de
memórias -afetivas e culinárias.
Acaba de completar 43 anos e começou a cozinhar muito criança,
espiando a avó preparar a marmita do avô. Italiano da cidade vêneta de Asiago e chef do sofisticado
Cipriani do Copacabana Palace
Hotel desde fevereiro de 1994,
quando o restaurante foi aberto
no Rio, trabalhou no célebre hotel
Cipriani & Pallazzo Vendramin,
de Veneza. Leia a seguir trechos
da entrevista exclusiva, e de dar
água na boca, que ele deu à Folha.
ORIGENS - "Tomei gosto pela cozinha ainda menino. Meu avô Angelo era pedreiro e saía cedinho
para trabalhar. Ele gostava de comer bem, mas um prato único [ao
contrário da tradição italiana de
comer dois pratos]. Numa época,
ele trabalhou construindo um
hospital, que era até perto da nossa casa, e eu ia lá com minha avó,
levar a comida fresquinha. Acabava comendo com ele, embora minha avó reclamasse. Mas foi assim
que tudo começou: via a minha
avó Maria Carli cozinhar, fazer a
marmita do vovô - e ficava maravilhado. Morei com eles até fazer 13 anos. Ele trabalhou duro até
os 75 anos. Levantava cedo, tomava uma xícara de café, um copo de
vinho e ia para o trabalho. No domingo ele não trabalhava, aí minha avó fazia banquete. Eles eram
tudo para mim."
PASSADO - "Antes de casar com
a minha avó, meu avô viveu na
Austrália. Acabou voltando para a
Itália, chamado pela família.
Quando eles casaram, ele tinha 42
anos, ela apenas 23. Ele era bonitão, e minha avó dizia que só descobriu a idade dele no cartório. Os
amigos dele, diziam, ficaram ricos
lá na Austrália. E eu, que adotei o
Brasil, também sempre tive vontade de visitar a Oceania, mas ainda não cheguei lá. Falando ainda
das comidas da minha avó, no inverno, algumas vezes ela fazia
arenque, que não era um peixe
chique então. Antigamente todas
as famílias tinham um porco -e
quantas coisas se podia fazer com
ele, incluindo embutidos e até tortas de sangue! E, quando eu era
menino, todo mundo tinha a sua
pequena horta, plantava milho, se
virava. No outono, era época da
caça da codorna, normalmente
assada com sálvia e toucinho."
ORIGEM - "Minha cidadezinha,
Asiago, fica num planalto, a 1.000
m de altitude, perto de Cortina
d'Ampezzo. Nos anos 50 e 60, o
local foi uma cidade turística no
alto da montanha, nas Pequenas
Dolomiti, e lá se exploravam as
temporadas de verão e de inverno. Sempre que vou lá, dou um
jeito de ir na época do esqui, pois
sou amante desse esporte."
INGREDIENTES - "Ao contrário
do que se pensa, os italianos têm
uma grande tradição em utilizar o
feijão. Na salada, na sopa, de todo
jeito, feijão-branco, muito usado
nas saladas no verão, mas também feijão rajado. As sopas de feijão do Vêneto já são mais pesadas,
próprias para o inverno, como
também o "fagioli all'uccelletto",
feito com carne de porco."
À MODA DO CHEF - "Acho que
sempre vai haver espaço para
produtos mais artesanais, mesmo
que haja avanço do transgênico.
Sempre haverá qualidade em
contraposição à quantidade. E
também é importante buscar a
inovação: você já provou o minicreme brulée de foie gras com pedacinhos de ragu de pêra cozida
em cima? Minha comida tem
acento veneziano, mas é italiana, a
um só tempo tradicional e contemporânea. No menu degustação, coloquei um prato tailandês
que adoro: arroz frito com frutos
do mar, ovo, pimenta malagueta,
salsinha, cebola pouco frita e abacaxi fresco picadinho por cima."
CIPRIANI/RIO - "O início, abrindo o restaurante no Rio, foi difícil.
Pesquisamos para achar produtos
adequados à cozinha do Cipriani.
Quando cheguei, em 1993, para
abrir o restaurante, era complicado achar ingredientes. Aí veio o
Plano Real, abriu o mercado, apareceram coisas importadas e, depois, os produtos brasileiros melhoraram também. Com a desvalorização do real, tudo subiu de
preço, mas os ingredientes passaram a existir. O peito de pato brasileiro tem uma qualidade bem
próxima a do magret francês;
idem o foie gras, que não é idêntico na textura, é mais granuloso,
mas tem sabor adequado."
CIPRIANI NO MUNDO - "Além do
Cipriani aqui no Copa, há outro,
no Lapa Palace, em Lisboa, hotel
que também pertence ao grupo
Orient-Express, capitaneado pelo
gerente-geral Sandro Fabris, que
ajudou a abrir o restaurante aqui
no Rio. Originalmente o dono do
hotel Cipriani numa ilha de Veneza era o dono do Harry's Bar, próximo à praça San Marco, onde foram criados o carpaccio, certamente uma grande invenção gastronômica, e o drinque bellini, de
espumante seco e pêssego, que
ainda fazemos aqui -quando encontramos bom pêssego fresco."
VENEZA - "Tenho a sorte de ter ficado hospedado no hotel Cipriani
de Veneza algumas vezes, pois
sou amigo do mítico diretor Natale Rusconi e do chef Renato Piccolotto, craques do setor. Mas vou
também aos botecos, os "baccari",
em que se bebe uma taça de vinho
branco, lá chamado em dialeto de
"ombra", pois se bebia na sombra
do campanário da basílica de San
Marco. Gosto muito daquelas comidas de lá, o "baccalà mantecato", feito com bacalhau (veja a receita ao lado), também a polenta
-na Itália se diz que os habitantes do norte são "polentoni", porque comem polenta de todo jeito:
mole ou dura, com farinha de milho mais grossa ou mais fina. Sobretudo em Veneza, onde há muitos pratos de peixe, a polenta é feita com milho branco, que é mais
delicado. Nos outros lugares do
norte da Itália, a polenta amarela,
com lingüiça, é bastante popular.
Até nhoque de polenta faziam nos
tempos antigos, quando faltava
pão. No Vêneto, mar e montanha
são próximos. Mesmo o bacalhau,
que hoje é caro, não era naquela
época. Idem o arenque, que hoje é
chique, mas que estava no repertório das comidas da minha avó.
Aqueles minipolvos que lá chamam de "moscardini", tão saborosos, cozidos na água e temperados
com azeite e salsinha, são coisas
que só se encontram lá, com um
sabor forte e característico. Sabe,
eu adoro cozinhar, ir ao mercado
de peixe. E, quando estou lá, adoro acompanhar as refeições com
um vinho branco frutado. Mas a
riqueza do Vêneto à mesa não termina aí: as sopas, os risotos, as saladas."
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