São Paulo, segunda-feira, 12 de agosto de 2002

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RUMO AO FRIO

Praticante do "estabacowboard" usa equipamento do snowboard, mas fica com a cara enfiada na neve

Casseta lança esporte radical em Chillán

HELIO DE LA PEÑA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Contrariando meu instinto de sobrevivência, minha preguiça e meu horror ao frio, decidi ir para a cordilheira dos Andes e encarar a neve em Chillán só para depois ter conversa para jogar fora.
Chillán fica ao sul de Santiago, capital do Chile, país conhecido como o Marco Maciel da geografia mundial. Não sei como é no verão, mas, no inverno, Chillán é um amontoado de neve a 2.000 metros de altitude, próximo ao vulcão Chillán, ainda ativo.
A princípio, me parece uma boa locação para um documentário de aventureiros para TV a cabo. Mas o pior estava por vir. Eu tinha uma missão e não sabia. Fui ungido pelos deuses para subir os Andes e fundar um novo esporte radical: o "estabacowboard".
Essa modalidade lembra muito o snowboard. Usa os mesmos equipamentos, as mesmas pistas; a diferença é que o "estabacowboard" é praticado deitado, com a cara enterrada na neve.
O primeiro passo de um carioca que vai para o frio é descolar uns casacos. Ninguém no Rio tem roupa de frio. A gente costuma se virar vestindo tudo que tem no armário ao mesmo tempo.
Como soube que Chillán era mais frio do que Campos do Jordão (SP), peguei emprestada uma barraca de camping para improvisar um sobretudo.
Ao chegar em Chillán, vi que o buraco era mais embaixo, quer dizer, mais em cima, a temperatura é que era mais embaixo. Precisamente dois abaixo de zero. Para aclimatar meu corpo e estar apto a me esborrachar na neve, resolvi passar minha primeira noite dentro do frigobar.
Apesar da geografia favorável, reunindo deserto, praia e neve, os esportes radicais são novidade no Chile. Na época do governo de Augusto Pinochet (1973-1990), quem quisesse praticar qualquer coisa radical acabava torturado e fuzilado. O "estabacowboard" também pode ser visto como uma forma de tortura. A diferença é que você é quem paga para sofrer.
Para minha surpresa, a primeira aula do esporte não foi traumatizante. Passei metade do tempo escolhendo a prancha e as botas ideais e a outra metade, tentando calçar as botas e prendê-las na prancha. É que você tem de tomar uma decisão política fundamental: o que irá na frente, o pé direito ou o esquerdo. Se você for indeciso, é melhor esquecer esse esporte e tentar a vida no esqui.
No segundo dia a coisa piora. O mico começa na patética tentativa de sentar no teleférico em movimento, com uma tábua de metro no pé. A experiência pode ser útil no futuro. Você pode estar preso no Carandiru e precisar fugir com as pernas amarradas por uma roda gigante funcionando.
O passeio de teleférico em Chillán é maravilhoso, a paisagem é deslumbrante, inenarrável. O problema é que depois você é obrigado a descer montanhas de gelo em cima daquela pequena ripa de madeira!
E não tem negociação com o instrutor (ou instrutora, sei lá, todo mundo usa tanta roupa que não dá para garantir). A verdade é que as pranchas de snowboard são perfeitas para atletas radicais. Para os turistas, fica faltando tração 4x4, buzina, freios ABS e estofamento na bunda.
Dali em diante, me submeti a várias sessões de derrapadas, trombadas e quedas improváveis e perigosas. Por mais de uma vez desafiei a lei da gravidade. Contrariei também o ditado que diz "do chão não passa".
Normalmente, no fim de uma manobra, eu estava a 15 m abaixo do solo, no precipício. Apesar dos obstáculos, nunca pensei em desistir. E, graças à minha insistência, cheguei a realizar algumas manobras mais avançadas, como o torcicolo, a rotação de joelho e o rompimento do tornozelo.
Todo esse esforço tinha um objetivo, a segunda etapa do "estacowboard": o banho nas piscinas termais de Chillán, onde você fica imerso em águas vulcânicas mantidas a 38C, no meio da neve. É o único esporte radical de inverno 100% seguro que existe por lá.
Voltei do Chile orgulhoso de, naquela semana, ter me tornado uma referência nas pistas de Chillán. Quando alguém se perdia, era só perguntar: "Amigo, donde fica la cafeteria?" "Estás viendo aquele afro negón enterrado en la nieve ? És luego a la direita..."


Helio de la Peña, atleta radical exclusivo das Organizações Tabajara, é ator e redator do programa "Casseta & Planeta Urgente", da Rede Globo


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