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FERNANDO GABEIRA
O Brasil escrito nos postes
"Difícil falar de uma sensação que não se entende. Lembro-me de tê-la sentido
duas vezes no exterior. Em ambas, Paris e Berlim, viajava de
carro e o motorista ligou o som.
Deslizei pelo bulevard Sebastopol
ouvindo a canção de Cartola e de
alguém. Creio que Caetano cantava: "Nosso caso de amor não
acontece". Em Berlim, era Djavan
e nevava..."açaí, guardiã".
A sensação era de tristeza. Som
e imagem dissociavam-se; olhos e
coração trilhavam caminhos
opostos. Essa estranha sensação
de tristeza me invade agora, andando pelas ruas do Rio, cobertas
de cartazes, de galhardetes e de
faixas dos candidatos.
Olhos e coração de novo se separam. Não há como renovar a esperança vendo todas aquelas caras no poste, sabendo de sua
chance de vitória. Algumas faces
sorridentes apóiam-se nos trapos
dos rivais, rasgados de madrugada; bocas, narizes, fragmentos
saltam dos galhardetes sepultados na luta matinal.
Operários, como o leiteiro de
Drummond, saem de madrugada
com suas latas de cola, mas não
trazem leite bom para gente
ruim. Toscos cirurgiões plásticos
moldam caras sobre caras, justapõem perfis e slogans, e o que vemos ao despertar: sorrisos emergindo de papel rasgado, ataduras
de múmias profanadas.
Às vezes, consigo rir da minha
tristeza. A candidata que domina
os postes do meu quarteirão está
mudando de cor. Uma pesada
máscara cosmética cobre seu rosto. A chuva não derreteu a maquiagem. Mas aos poucos ela está
ficando verde, como se atacada
por uma crise aguda de fígado.
Ficará, assim, um fantasma nos
olhando do alto do poste, até que
renovem o cartaz ou alguém cole
outro sobre ele, deixando de fora
um pedaço de sorriso, alguns dentes, letras esgarçadas de sua proposta de felicidade geral.
Compreendo o desespero de Gerald Thomas sobre os rumos do
mundo. Ele escreve de Nova York
impressionado com os dirigentes
americanos e com a sua cegueira
destruidora. Fala também das
promíscuas alianças políticas no
Brasil, surubas cívicas onde se
abraçam e se beijam não só inimigos do passado e aberrações
programáticas.
O que me preocupa mais aqui
não é tanto o quadro de alianças,
apesar de sua extravagância. O
que me preocupa e me deixa triste, como quando estava em Paris
ou em Berlim, é ver o mundo caminhando para um lado e os discursos dos candidatos para o outro, criando de novo essa dissociação entre som e imagem que me
impede de ancorar no presente.
Os franceses Gérard Desportes e
Laurent Mauduit escreveram um
livro intitulado "La Gauche Imaginaire et Le Nouveau Capitalisme" (a esquerda imaginária e o
novo capitalismo, da editora
Grasset, 1999, 302 págs.).
Numa análise impiedosa do governo do socialista Lionel Jospin,
mostraram como a social-democracia manteve uma retórica de
mudança, mas fez, de forma comportada, o jogo do grande capital.
Não quero dizer que esse seja o
caso do Brasil. Vejo apenas os
candidatos prometendo milhões
de empregos num mundo dominado economicamente pelas
transnacionais, vivendo um desemprego estrutural e um modelo
que só tende a aprofundá-lo, desde a década de 80.
Não seria melhor reconhecer o
peso das transnacionais na economia? Não seria melhor prometer cursos de reciclagem para os
desempregados ou estimulá-los a
inventar a própria renda?
O quadro geral das propostas
ainda é o de ajudar as pessoas
tornando-as clientes do Estado,
com pouca ênfase numa realidade que nos obrigará a impulsioná-las à busca autônoma da sobrevivência.
Isso tudo vale para uma política
cada vez mais dominada pela TV.
Comecei pensando em responder
a Gerald Thomas, mas acabei
ampliando seus argumentos.
Proponho uma frase do dramaturgo irlandês Samuel Beckett para inaugurar nosso diálogo: "Não
posso continuar, vou continuar".
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