São Paulo, segunda-feira, 12 de agosto de 2002

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FERNANDO GABEIRA

O Brasil escrito nos postes

"Difícil falar de uma sensação que não se entende. Lembro-me de tê-la sentido duas vezes no exterior. Em ambas, Paris e Berlim, viajava de carro e o motorista ligou o som. Deslizei pelo bulevard Sebastopol ouvindo a canção de Cartola e de alguém. Creio que Caetano cantava: "Nosso caso de amor não acontece". Em Berlim, era Djavan e nevava..."açaí, guardiã".
A sensação era de tristeza. Som e imagem dissociavam-se; olhos e coração trilhavam caminhos opostos. Essa estranha sensação de tristeza me invade agora, andando pelas ruas do Rio, cobertas de cartazes, de galhardetes e de faixas dos candidatos.
Olhos e coração de novo se separam. Não há como renovar a esperança vendo todas aquelas caras no poste, sabendo de sua chance de vitória. Algumas faces sorridentes apóiam-se nos trapos dos rivais, rasgados de madrugada; bocas, narizes, fragmentos saltam dos galhardetes sepultados na luta matinal.
Operários, como o leiteiro de Drummond, saem de madrugada com suas latas de cola, mas não trazem leite bom para gente ruim. Toscos cirurgiões plásticos moldam caras sobre caras, justapõem perfis e slogans, e o que vemos ao despertar: sorrisos emergindo de papel rasgado, ataduras de múmias profanadas.
Às vezes, consigo rir da minha tristeza. A candidata que domina os postes do meu quarteirão está mudando de cor. Uma pesada máscara cosmética cobre seu rosto. A chuva não derreteu a maquiagem. Mas aos poucos ela está ficando verde, como se atacada por uma crise aguda de fígado.
Ficará, assim, um fantasma nos olhando do alto do poste, até que renovem o cartaz ou alguém cole outro sobre ele, deixando de fora um pedaço de sorriso, alguns dentes, letras esgarçadas de sua proposta de felicidade geral.
Compreendo o desespero de Gerald Thomas sobre os rumos do mundo. Ele escreve de Nova York impressionado com os dirigentes americanos e com a sua cegueira destruidora. Fala também das promíscuas alianças políticas no Brasil, surubas cívicas onde se abraçam e se beijam não só inimigos do passado e aberrações programáticas.
O que me preocupa mais aqui não é tanto o quadro de alianças, apesar de sua extravagância. O que me preocupa e me deixa triste, como quando estava em Paris ou em Berlim, é ver o mundo caminhando para um lado e os discursos dos candidatos para o outro, criando de novo essa dissociação entre som e imagem que me impede de ancorar no presente.
Os franceses Gérard Desportes e Laurent Mauduit escreveram um livro intitulado "La Gauche Imaginaire et Le Nouveau Capitalisme" (a esquerda imaginária e o novo capitalismo, da editora Grasset, 1999, 302 págs.).
Numa análise impiedosa do governo do socialista Lionel Jospin, mostraram como a social-democracia manteve uma retórica de mudança, mas fez, de forma comportada, o jogo do grande capital.
Não quero dizer que esse seja o caso do Brasil. Vejo apenas os candidatos prometendo milhões de empregos num mundo dominado economicamente pelas transnacionais, vivendo um desemprego estrutural e um modelo que só tende a aprofundá-lo, desde a década de 80.
Não seria melhor reconhecer o peso das transnacionais na economia? Não seria melhor prometer cursos de reciclagem para os desempregados ou estimulá-los a inventar a própria renda?
O quadro geral das propostas ainda é o de ajudar as pessoas tornando-as clientes do Estado, com pouca ênfase numa realidade que nos obrigará a impulsioná-las à busca autônoma da sobrevivência.
Isso tudo vale para uma política cada vez mais dominada pela TV. Comecei pensando em responder a Gerald Thomas, mas acabei ampliando seus argumentos.
Proponho uma frase do dramaturgo irlandês Samuel Beckett para inaugurar nosso diálogo: "Não posso continuar, vou continuar".


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