São Paulo, segunda-feira, 12 de novembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FERNANDO GABEIRA

Cultura negra e foguetes se chocam em Alcântara

Alcântara, 18 anos depois. Ainda são plúmbeas as águas da baía de São Marcos, mas o barco que sacode agora, o Baía Star, não é o mesmo que sacudia antes, o Avante, hoje uma velha carcaça.
Não venho como turista, mas sim em uma viagem oficial para avaliar como o Brasil combinou duas experiências diferentes, a instalação de uma base de lançamento de satélites e a complexa experiência dos remanescentes (3.600 famílias) dos quilombos num território étnico de pouco mais de 100 mil hectares.
Atracamos no porto novo, e alguns meninos negros vieram ajudar nas malas. Mas a atmosfera era diferente. Um grupo de mototáxis montado em Titans 125 esperava os passageiros para levá-los à cidade.
E agora há uma estrada asfaltada, rasgada por imensas crateras, revelando que entre as ruínas coloniais cresciam também as ruínas da modernidade.
Um foguete subindo ao espaço, visto de lugares que ainda sequer têm luz elétrica, nos dá a impressão de que estamos vigorosamente entrando no futuro e de que as comunidades negras, com sua cultura, sua complexa relação com a posse da terra e sua maestria em usar os recursos naturais, ficaram mergulhadas no passado.
Valeu a pena voltar a esse lugar, que é um dos mais bonitos do planeta, para compreender que, nesse confronto de épocas, o buraco é mais embaixo.
Recentemente votamos algumas ressalvas ao acordo entre Estados Unidos e Brasil para o uso da base pelos norte-americanos. O centro do debate era garantir o maior espaço possível para a soberania nacional.
Mas, aqui em Alcântara, sou sempre tentado a pensar um pouco mais livremente. Soberania de quem? Quem somos nós, brasileiros, nesse mundo globalizado, onde se produzem centenas de identidades, algumas de resistência, outras de legitimação?
As classes dominantes de Alcântara, ao perderem a perspectiva econômica, simplesmente foram embora, levando a maçaneta das portas. Negros e escravos, com uma propriedade de terra singular, dividiram-se em comunidades, organizaram habilmente as áreas de pesca.
Eram felizes quando chegou a base e metade de suas terras foram desapropriadas, cerca de 55 mil hectares. Hoje não são mais.
A visão do governo nacional foi a de retirar as pessoas de suas terras, reunir uma parte das famílias em "agrovilas", com casas de 50 m2, e estabelecer um rígido regime de disciplina: não podem construir mais nada, mesmo que nasçam filhos ou se os casais se separem. Até dos seus mortos foram separados, e o cemitério, não podendo ser cuidado todos os dias, começou a definhar.
As terras eram antes usadas livremente, mas agora tinham de ser num lugar predeterminado, incapazes de garantir seu sustento. Os antropólogos que estudam esse processo consideram que houve lento massacre cultural.
Mas o processo ainda não terminou. Eles choram quando contam sua experiência, mas acham que a base deve continuar ali, lançando seus satélites. E nisso concordo com eles, pelo que ouvi no encontro da igreja, ou mesmo na Ladeira, comunidade distante onde chegamos através de uma estrada esburacada.
À luz de velas e lamparinas, suas companheiras noturnas, falaram dos foguetes e da base e lembraram rindo que ainda nem conhecem a tão falada televisão. Sua luta para manter a tradição para recuperar o controle da complexa forma social que construíram é um combate que os antropólogos chamam de "Território Étnico".
O Brasil escolheu lançar foguetes nas cinzas de um "Território Étnico" sem perceber que chegava à linha de frente na tecnologia com uma idéia superada de civilização.
O caminho que ainda pode salvar essas ruínas de muitas épocas que coexistem na beleza natural de Alcântara é entrar de vez no século 21, valorizando simultaneamente os satélites e a identidade cultural dos quilombolas.
Isso passa por uma gigantesca tarefa de reparação, tranquilizando os que ainda têm medo de perder suas casas, oferecendo alternativas para sua reorganização como "Território Étnico", abrindo caminho para que possam viver felizes, em harmonia com o lugar que adoram.
E a segurança nisso tudo? Como fazer uma base sem ocupar um espaço enorme? Existem algumas margens de adaptação e elas ficam bem maiores se as pessoas estiverem satisfeitas com a base, achando que fizeram todo o possível para reparar os erros do passado, que já são tema até de denúncia à Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Harmonizar satélites e quilombolas num mesmo espaço pode ser fundamental para o Brasil saber quem é ele nesse mundo crivado pelo fluxo de comunicações.
Se os satélites arruinarem os quilombolas, quando falarmos de soberania, vamos falar de uma unidade nacional na qual será difícil que negros e índios se reconheçam. Não precisamos nem voltar ao Descobrimento do Brasil. Basta voltar ao aniversário de 500 anos do Descobrimento do Brasil.


Texto Anterior: Sites
Próximo Texto: Mundo em liquidação: Vôo ao "exótico" sai por menos de US$ 1.000
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.