São Paulo, segunda-feira, 13 de janeiro de 2003

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FERNANDO GABEIRA

O Brasil diante de uma guerra

Um amigo alemão, Sebastian Scheerer, escreve propondo iniciativa de paz. Seu "friedensplan" é simples: abaixo-assinados ao Conselho de Segurança da ONU pedindo que, antes de aceitar a guerra contra o Iraque, faça um levantamento do impacto social e ambiental do conflito.
Os pacifistas alemães buscam todos os caminhos racionais para deter a guerra. Seus esforços dão frutos na Europa e começam a vingar também em solo americano, onde um movimento diferente daquele contra a Guerra do Vietnã dá também seus primeiros passos. Diferente, porque envolve sindicatos, igrejas e não mais apenas os estudantes radicalizados.
Aceitei a proposta de Scheerer sem hesitar, mas admito que ela representa ainda muito pouco para um brasileiro nas minhas circunstâncias. Ao contrário de outros países, o Brasil ainda não se deu conta da proximidade real da guerra contra o Iraque a ponto de discutir suas consequências nos trópicos.
Sabemos apenas que a combinação da crise na Venezuela com a guerra do Iraque pode mandar o preço do petróleo para o espaço. Isso ameaça nosso projeto de estabilidade econômica e torna draconiana a manutenção de um superávit primário que deveria, no meu ponto de vista, estar sujeito às diferentes conjunturas.
Mais do que uma questão econômica, a guerra colocará o primeiro grande problema de articulação "governo-sociedade". Que papel será reservado ao governo, o que as diversas organizações sociais devem fazer para que o Brasil exerça o máximo de influência com o mínimo de desgaste?
Todos sabem que a margem de manobra do governo brasileiro, diante de uma guerra aprovada pelo Conselho de Segurança, é pequena. As intervenções têm de ser equilibradas, racionais e devem ser tomadas com o mais amplo conhecimento dos detalhes do jogo diplomático.
O fato de o governo estar, de certa forma, limitado a atuar numa esfera que tem linguagem e ritmo próprios, não significa que a sociedade brasileira deva ficar calada. Pelo contrário, ela deve expor sua posição pela paz, constituindo uma ampla frente que passe por religiões, partidos políticos, ONGs, sindicatos e movimento estudantil, entre outros.
Posso me equivocar, mas temo que a guerra chegue em fevereiro, depois do informe dos inspetores da ONU. Nosso tempo de preparação é curto, se compararmos nosso estágio com o dos pacifistas europeus. Mas haverá um espaço privilegiado para que se estabeleçam os primeiros contatos, o Fórum Social de Porto Alegre.
Uma guerra contra o Iraque pode, na aparência, estar desconectada da globalização. Mas ela está no centro, da mesma forma que o encontro de Johannesburgo, indiretamente, tratava desse problema crucial: a decadência do petróleo como fonte de energia e os esforços desesperados para dominar as reservas restantes.
Scheerer quer um relatório do impacto social e ambiental da guerra. O econômico já foi feito e, independentemente de cifras que entram em choque, é razoável afirmar que bilhões de dólares serão perdidos nessa empreitada. É também razoável admitir que, se os norte-americanos e os ingleses enterram bilhões de dólares para controlar o petróleo iraquiano, isso, mais cedo ou mais tarde, passará ao preço do produto.
Segundo o calendário de Bush, estamos na primeira guerra do século 21, capítulo dois, isto é, ataque a um dos Estados que formam o "eixo do mal", enquanto o outro, a Coréia do Norte, é mantido em banho-maria, não porque esteja adiantado na construção da bomba, mas porque não tem petróleo e vive num sufoco alimentar. No momento, a Coréia do Norte, ao provocar os EUA, lembra aquele filme chamado "O Rato que Ruge", que conta a história de um pequeno país que sonhava ser vencido numa guerra.
Se o conflito no Iraque nos colher numa posição de indiferença focada apenas no preço do petróleo, o Brasil terá se saído de forma medíocre no seu primeiro grande teste internacional.
Com as limitações materiais impostas ao governo pela conjuntura, a sociedade terá de considerar como tarefa sua a execução do fundamento de nossa política externa, que é a luta pela paz.
Isso dará força e sobretudo conforto e margem de manobra para o governo se mover na ONU e nos contatos diplomáticos. Se um dos parceiros falhar, a tarefa pode se tornar muito pesada para o outro. Tanto a sociedade sem respaldo no governo, como o inverso, reduziriam nossos esforços a uma gota d'água no oceano. Se podemos, pelo menos, derramar um copo, por que não tentar?
Caro Sebastian e amigos alemães, por melhor que seja o "friedensplan", estamos diante de uma tarefa gigantesca em escala mundial. Não se trata mais de uma guerra clássica, em que os dois oponentes se confrontam. É uma decisão unilateral, de atacar preventivamente. Nos anos do Vietnã, pelo menos, tínhamos os fotógrafos revelando os horrores da guerra. Hoje eles fotografam tanques contra o pôr-do-sol, cartões-postais que estetizam o movimento militar e fazem da guerra algo limpo e ascético para os olhos do mundo.


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