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FERNANDO GABEIRA
Viagem entre "O Clone" e "Réquiem para um Sonho"
Nas últimas semanas,
têm chegado mensagens na
minha caixa eletrônica perguntando sobre a novela "O Clone".
O que acho da maneira como é
tratada a questão das drogas?
Ando correndo atrás do tempo.
Seria leviano se eu desse uma opinião ignorando quase todos os
capítulos, as inter-relações dos
personagens.
Reconheço que é uma lacuna.
Uma novela de grande audiência
acaba se tornando referência para a maioria do povo brasileiro.
Dois presidenciáveis já se manifestaram sobre ela. Lula ficou comovido. Garotinho disse que os
depoimentos de usuários de drogas foram tomados em clínicas
que ele construiu.
Mesmo quem, como eu, não
conseguiu ver todos os capítulos
pode testemunhar o grande impacto social da novela: jovens
procurando clínicas de recuperação, artistas descrevendo os dissabores dos tempos em que eram
usuários de cocaína.
Tudo o que posso aconselhar
aos que me perguntam sobre "O
Clone" é que amplie a experiência
estética que sentiram com outras
obras sobre o tema e, também,
com os dados do comércio internacional de drogas divulgados na
semana passada pelo Observatório Europeu das Drogas.
Vi, há pouco tempo, o filme
"Réquiem para um Sonho", dirigido por Darren Aronofsky. Com
os dados que tenho, posso compará-lo a "O Clone" num aspecto
fundamental: o papel da TV. Em
"O Clone", a TV é apenas um veículo que coloca o problema das
drogas, estimula a sociedade a
discuti-lo e, quem sabe, superá-lo.
Em "Réquiem", a TV é apenas
mais uma droga poderosa que arruina lentamente a atriz principal, uma velha solitária mergulhada num cotidiano sentimentalmente miserável.
Ellen Burstyn está maravilhosa
no papel. O sonho da personagem
é participar de um show de TV,
ser reconhecida, saudada com entusiasmo por aquelas claques que
formam a platéia.
O filho dela usa drogas, compra,
falsifica e vende. Ele vai ser esmagado também. Enquanto ainda
ganhava dinheiro com o tráfico,
resolveu comprar um novo aparelho para a mãe: "a televisão é o
barato dela", diz ele. "Por que
não melhorar sua imagem?".
Os usuários de droga em "Réquiem" não são anomalias num
mundo de odaliscas e amores cruzados. O próprio mundo onde estão mergulhados é uma engrenagem cinzenta. Ninguém escapa,
nem a TV nem a psicanálise.
Esse enfoque é interessante,
também, porque no fundo faz
parte de uma outra pergunta:
quais são as causas do abuso de
droga no mundo? Uma premissa
fundamental no debate, circunscrito hoje no Brasil, é o mata, esfola, legaliza ou libera, como se o
consumo de droga fosse apenas
um relâmpago em céu azul.
Enfim, algo que possa ser resolvido na relação com os consumidores, sem levar em conta as frustrações de nossa época.
Qual a vantagem de ver "Réquiem" se em "O Clone" é dada,
também, uma visão realista do
drama dos usuários?
Além desse papel invertido da
TV, há, em "Réquiem", uma referência às drogas para emagrecer.
A velha sonha em participar do
programa com um vestido vermelho de sua juventude. Precisa
emagrecer e, para isso, todos os
dias toma anfetaminas, até ficar
completamente louca. O médico
que receita as pílulas nem olha
para ela durante a consulta.
Pelo menos nesse particular,
"Réquiem" seria útil para o Brasil, pois nosso país é o maior consumidor mundial de remédios
para emagrecer, segundo dados
da Secretaria de Vigilância Sanitária. Por falar em dados, o relatório do Observatório Europeu
traz alguns chocantes: 60% da população carcerária nos Estados
Unidos foi presa por causa de drogas, 50% dos prisioneiros eram
apenas consumidores. Cerca de
35% está contaminado com Aids,
tuberculose e hepatite B.
O estudo foi realizado em sintonia com a Universidade de Oldsburg, na Alemanha, e constatou
que a União Européia gasta apenas 5% do que os EUA gastam
com doenças relacionadas ao
consumo de drogas.
A tendência européia de não prender usuários está permitindo um uso mais equilibrado das vagas nas prisões e apresentando um impacto teoricamente previsível: o fato de o usuário não ser preso desestimula o uso das drogas como um ato de rebeldia contra a sociedade entre aqueles que querem, subconscientemente, agredir o "establishment".
Novas famílias de drogas sintéticas estão sendo lançadas no
mercado, como a ketamina, anestésico líquido usado, em alguns
casos, para adormecer meninas ou para aplicar golpes daquele tipo muito realizado no Rio de Janeiro entre a população gay, chamado de "boa-noite, Cinderela".
Numa reunião da ONG Viva Rio, quando falava sobre a questão das drogas, fui informado de que iria ao ar uma novela da Globo abordando o tema. Não imaginei que ela fosse colocar a questão com tanto vigor na agenda nacional, comovendo a classe média e os presidenciáveis.
Agora, talvez, já se possa fazer a pergunta que o jornalista Timothy Kinchey levantou ao sintetizar o relatório do Observatório Europeu: por que nossas sociedades estão produzindo gerações de jovens que precisam de drogas para fazer amor, dançar, estudar, trabalhar ou pensar?
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