São Paulo, segunda-feira, 13 de maio de 2002

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FERNANDO GABEIRA

Viagem entre "O Clone" e "Réquiem para um Sonho"

Nas últimas semanas, têm chegado mensagens na minha caixa eletrônica perguntando sobre a novela "O Clone". O que acho da maneira como é tratada a questão das drogas? Ando correndo atrás do tempo. Seria leviano se eu desse uma opinião ignorando quase todos os capítulos, as inter-relações dos personagens.
Reconheço que é uma lacuna. Uma novela de grande audiência acaba se tornando referência para a maioria do povo brasileiro. Dois presidenciáveis já se manifestaram sobre ela. Lula ficou comovido. Garotinho disse que os depoimentos de usuários de drogas foram tomados em clínicas que ele construiu.
Mesmo quem, como eu, não conseguiu ver todos os capítulos pode testemunhar o grande impacto social da novela: jovens procurando clínicas de recuperação, artistas descrevendo os dissabores dos tempos em que eram usuários de cocaína.
Tudo o que posso aconselhar aos que me perguntam sobre "O Clone" é que amplie a experiência estética que sentiram com outras obras sobre o tema e, também, com os dados do comércio internacional de drogas divulgados na semana passada pelo Observatório Europeu das Drogas.
Vi, há pouco tempo, o filme "Réquiem para um Sonho", dirigido por Darren Aronofsky. Com os dados que tenho, posso compará-lo a "O Clone" num aspecto fundamental: o papel da TV. Em "O Clone", a TV é apenas um veículo que coloca o problema das drogas, estimula a sociedade a discuti-lo e, quem sabe, superá-lo.
Em "Réquiem", a TV é apenas mais uma droga poderosa que arruina lentamente a atriz principal, uma velha solitária mergulhada num cotidiano sentimentalmente miserável.
Ellen Burstyn está maravilhosa no papel. O sonho da personagem é participar de um show de TV, ser reconhecida, saudada com entusiasmo por aquelas claques que formam a platéia.
O filho dela usa drogas, compra, falsifica e vende. Ele vai ser esmagado também. Enquanto ainda ganhava dinheiro com o tráfico, resolveu comprar um novo aparelho para a mãe: "a televisão é o barato dela", diz ele. "Por que não melhorar sua imagem?".
Os usuários de droga em "Réquiem" não são anomalias num mundo de odaliscas e amores cruzados. O próprio mundo onde estão mergulhados é uma engrenagem cinzenta. Ninguém escapa, nem a TV nem a psicanálise.
Esse enfoque é interessante, também, porque no fundo faz parte de uma outra pergunta: quais são as causas do abuso de droga no mundo? Uma premissa fundamental no debate, circunscrito hoje no Brasil, é o mata, esfola, legaliza ou libera, como se o consumo de droga fosse apenas um relâmpago em céu azul.
Enfim, algo que possa ser resolvido na relação com os consumidores, sem levar em conta as frustrações de nossa época.
Qual a vantagem de ver "Réquiem" se em "O Clone" é dada, também, uma visão realista do drama dos usuários?
Além desse papel invertido da TV, há, em "Réquiem", uma referência às drogas para emagrecer. A velha sonha em participar do programa com um vestido vermelho de sua juventude. Precisa emagrecer e, para isso, todos os dias toma anfetaminas, até ficar completamente louca. O médico que receita as pílulas nem olha para ela durante a consulta.
Pelo menos nesse particular, "Réquiem" seria útil para o Brasil, pois nosso país é o maior consumidor mundial de remédios para emagrecer, segundo dados da Secretaria de Vigilância Sanitária. Por falar em dados, o relatório do Observatório Europeu traz alguns chocantes: 60% da população carcerária nos Estados Unidos foi presa por causa de drogas, 50% dos prisioneiros eram apenas consumidores. Cerca de 35% está contaminado com Aids, tuberculose e hepatite B.
O estudo foi realizado em sintonia com a Universidade de Oldsburg, na Alemanha, e constatou que a União Européia gasta apenas 5% do que os EUA gastam com doenças relacionadas ao consumo de drogas.
A tendência européia de não prender usuários está permitindo um uso mais equilibrado das vagas nas prisões e apresentando um impacto teoricamente previsível: o fato de o usuário não ser preso desestimula o uso das drogas como um ato de rebeldia contra a sociedade entre aqueles que querem, subconscientemente, agredir o "establishment".
Novas famílias de drogas sintéticas estão sendo lançadas no mercado, como a ketamina, anestésico líquido usado, em alguns casos, para adormecer meninas ou para aplicar golpes daquele tipo muito realizado no Rio de Janeiro entre a população gay, chamado de "boa-noite, Cinderela".
Numa reunião da ONG Viva Rio, quando falava sobre a questão das drogas, fui informado de que iria ao ar uma novela da Globo abordando o tema. Não imaginei que ela fosse colocar a questão com tanto vigor na agenda nacional, comovendo a classe média e os presidenciáveis.
Agora, talvez, já se possa fazer a pergunta que o jornalista Timothy Kinchey levantou ao sintetizar o relatório do Observatório Europeu: por que nossas sociedades estão produzindo gerações de jovens que precisam de drogas para fazer amor, dançar, estudar, trabalhar ou pensar?



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