São Paulo, segunda-feira, 14 de maio de 2001

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FERNANDO GABEIRA

Vamos precisar de um pouco de luz

Aviso aos navegantes: vai faltar energia. Essa modesta certeza é forte o bastante para que possamos incluí-la em nossos planos. Vai faltar luz nas férias de julho e isso vai repercutir no calendário turístico deste ano e, possivelmente, em 2002, ano das eleições presidenciais.
De repente, uma novidade em nossas vidas. Uma cidade como o Rio de Janeiro, por exemplo, deveria parar para pensar.
Os apagões serão diários e regulares. A segurança é precária em tempos normais. Na escuridão, será difícil se aventurar nas ruas ou esquecer a porta aberta.
De um modo geral, os telefones funcionam no escuro. Mas também podem não funcionar. Aí você vai ficar no escuro e isolado. Com uma boa lanterna, é possível ler. Como em Nova York, vão nascer mais crianças e a televisão ocupará um espaço menor em nossas vidas.
Nem sempre será um jogo de perdas e ganhos. Os deslocamentos terão de ser planejados. Se um filho sai, você terá de controlar seus deslocamentos para que não fique no escuro. Haverá menos liberdade de movimento e uma delicada organização do tempo. Restará o consolo no escuro de que, de uma certa forma, isso já era previsível.
Levamos anos discutindo a expressão "desenvolvimento sustentável". Nenhum de nós tinha a verdade sobre o tema.
Mas um racionamento de luz torna a idéia de desenvolvimento sustentável clara como o sol de inverno, que (pelo menos ele) não pode nos abandonar.
Sempre falamos em formas alternativas de energia: solar, eólica. Descobri agora que, no Nordeste, já se produz tanta energia eólica quanto a produzida na usina nuclear Angra 1. O que parecia imagem poética tornou-se hoje um dos campos nos quais mais se investe no capitalismo. Talvez o primeiro em pesquisas.
Mesmo no escuro, será possível ver que fomos pegos de calça na mão. Confesso que já estou de calça na mão. Mergulhado em desastres ecológicos e outros sobressaltos, não estudei como deveria o caso da Califórnia nem voltei aos livros sobre energia.
Tenho de começar um programa de estudo e realizá-lo dentro do próprio racionamento. Sempre pensei que a região dos Lagos, no Estado do Rio, seria uma área de produção de energia tocada a vento. Mas jamais enfatizei isso. E seria uma boa maneira de criticar as dispendiosas e problemáticas usinas nucleares.
Fico sabendo agora que os americanos estão comprando terras com bons ventos no Nordeste até por fax. Deles compramos a primeira usina nuclear. Agora vão nos vender energia limpa.
Poderíamos ter discutido melhor nossa matriz energética. Mas era difícil levar isso para as campanhas presidenciais.
Lembro que, ao visitar Israel, conversei com os dois melhores técnicos em energia solar do país. Eram brasileiros. Vendiam tecnologia para a Califórnia, que usava a energia solar nas horas de pico; não encontraram, no Brasil, espaço para discutir o tema.
Não tenho mais o direito de ver um racionamento apenas como acidente de percurso, aceitar a ótica de quem acha que haverá um tempo difícil, mas que voltaremos, de novo, à abundância. Sob muitos aspectos, nada será como antes.
A questão é tão profunda que fará cair todas as máscaras. A de Bush foi a primeira: jogou o Protocolo de Kyoto para o espaço e decidiu explorar petróleo em santuários ecológicos do Alasca.
Nos debates que vi aqui no Brasil, já percebi uma certa impaciência com o ambiente, como se a proteção da natureza fosse um obstáculo à produção de energia. Quase sempre, nesse caso, estão pensando em barragens.
O relatório da ONU sobre as barragens é devastador. É uma indústria que, entre outras coisas, deslocou de suas casas 4 milhões de pessoas.
O relatório recomenda regras rígidas e lembra que barragens mexem com elementos estratégicos de um país que vão além da energia: água potável, saneamento, saúde, pesca.
Tudo isso vamos pensar com calma, à luz de velas, ao longo deste próximo inverno.



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