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FERNANDO GABEIRA
Vamos precisar de um pouco de luz
Aviso aos navegantes: vai
faltar energia. Essa modesta
certeza é forte o bastante para
que possamos incluí-la em nossos
planos. Vai faltar luz nas férias de
julho e isso vai repercutir no calendário turístico deste ano e, possivelmente, em 2002, ano das eleições presidenciais.
De repente, uma novidade em
nossas vidas. Uma cidade como o
Rio de Janeiro, por exemplo, deveria parar para pensar.
Os apagões serão diários e regulares. A segurança é precária em
tempos normais. Na escuridão,
será difícil se aventurar nas ruas
ou esquecer a porta aberta.
De um modo geral, os telefones
funcionam no escuro. Mas também podem não funcionar. Aí você vai ficar no escuro e isolado.
Com uma boa lanterna, é possível
ler. Como em Nova York, vão
nascer mais crianças e a televisão
ocupará um espaço menor em
nossas vidas.
Nem sempre será um jogo de
perdas e ganhos. Os deslocamentos terão de ser planejados. Se um
filho sai, você terá de controlar
seus deslocamentos para que não
fique no escuro. Haverá menos liberdade de movimento e uma delicada organização do tempo.
Restará o consolo no escuro de
que, de uma certa forma, isso já
era previsível.
Levamos anos discutindo a expressão "desenvolvimento sustentável". Nenhum de nós tinha a
verdade sobre o tema.
Mas um racionamento de luz
torna a idéia de desenvolvimento
sustentável clara como o sol de inverno, que (pelo menos ele) não
pode nos abandonar.
Sempre falamos em formas alternativas de energia: solar, eólica. Descobri agora que, no Nordeste, já se produz tanta energia
eólica quanto a produzida na usina nuclear Angra 1. O que parecia
imagem poética tornou-se hoje
um dos campos nos quais mais se
investe no capitalismo. Talvez o
primeiro em pesquisas.
Mesmo no escuro, será possível
ver que fomos pegos de calça na
mão. Confesso que já estou de calça na mão. Mergulhado em desastres ecológicos e outros sobressaltos, não estudei como deveria o
caso da Califórnia nem voltei aos
livros sobre energia.
Tenho de começar um programa de estudo e realizá-lo dentro
do próprio racionamento. Sempre
pensei que a região dos Lagos, no
Estado do Rio, seria uma área de
produção de energia tocada a
vento. Mas jamais enfatizei isso. E
seria uma boa maneira de criticar as dispendiosas e problemáticas usinas nucleares.
Fico sabendo agora que os americanos estão comprando terras
com bons ventos no Nordeste até
por fax. Deles compramos a primeira usina nuclear. Agora vão
nos vender energia limpa.
Poderíamos ter discutido melhor nossa matriz energética. Mas
era difícil levar isso para as campanhas presidenciais.
Lembro que, ao visitar Israel,
conversei com os dois melhores
técnicos em energia solar do país.
Eram brasileiros. Vendiam tecnologia para a Califórnia, que usava
a energia solar nas horas de pico;
não encontraram, no Brasil, espaço para discutir o tema.
Não tenho mais o direito de ver
um racionamento apenas como
acidente de percurso, aceitar a
ótica de quem acha que haverá
um tempo difícil, mas que voltaremos, de novo, à abundância.
Sob muitos aspectos, nada será
como antes.
A questão é tão profunda que
fará cair todas as máscaras. A de
Bush foi a primeira: jogou o Protocolo de Kyoto para o espaço e
decidiu explorar petróleo em santuários ecológicos do Alasca.
Nos debates que vi aqui no Brasil, já percebi uma certa impaciência com o ambiente, como se
a proteção da natureza fosse um
obstáculo à produção de energia.
Quase sempre, nesse caso, estão
pensando em barragens.
O relatório da ONU sobre as
barragens é devastador. É uma
indústria que, entre outras coisas,
deslocou de suas casas 4 milhões
de pessoas.
O relatório recomenda regras
rígidas e lembra que barragens
mexem com elementos estratégicos de um país que vão além da
energia: água potável, saneamento, saúde, pesca.
Tudo isso vamos pensar com
calma, à luz de velas, ao longo
deste próximo inverno.
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