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CULTO
Catedral congrega torres em estilo barroco e pórtico românico dos século 12; construção deve ser observada de longe
Santiago desenha história em camadas
DO ENVIADO ESPECIAL À ESPANHA
A catedral de Santiago de Compostela, um dos principais pólos
de peregrinação católica do mundo, é um verdadeiro convite a
equivocadas interpretações históricas. O que se vê de fora reflete
muito pouco da relevância arquitetônica da igreja.
A julgar pela abundância de ornamentos retorcidos da fachada,
por exemplo, está-se diante de
uma obra barroca. A conclusão é
em parte correta: as duas torres
que dominam o conjunto datam
do século 17, quando essa escola
arquitetônica estava no auge na
Europa. Mas essa é apenas uma
parte da história, a mais recente e
não necessariamente a mais importante, já que imponentes
construções barrocas como essa
não são raras no continente.
A catedral tem uma história
pregressa. A fase barroca se sobrepôs a uma edificação românica, que, iniciada no século 11, demorou cerca de 130 anos para ficar pronta. O período marcou o
ápice dessa escola arquitetônica,
que contrasta com o barroco pela
sobriedade de sua concepção,
marcada por arcos, pelas paredes
maciças e pelas poucas janelas.
A simplicidade da arte românica está presente no pórtico da
Glória, logo na entrada da catedral. Datado do século 12, esse
conjunto de esculturas tinha um
sentido didático para a população
da época, em grande parte analfabeta. Dispostas em três colunas,
as figuras contam histórias bíblicas, do Antigo ao Novo Testamento, do Gênesis ao Apocalipse.
Pela primeira vez, os fiéis podiam
visualizar, esculpidos em pedra,
os principais personagens da história do cristianismo.
A atenção do visitante, porém,
não recai apenas sobre a imagem
de Cristo ou sobre a do próprio
Santiago. Destaca-se, entre as figuras, a do apóstolo Daniel, não
por sua importância na hierarquia da igreja, mas por ostentar
aquele que é considerado o primeiro sorriso retratado na arte
românica -até então os artistas
não captavam expressões faciais
em suas esculturas. A obra é de
autoria do mestre Mateo, que assina o trabalho ao incluir no conjunto uma escultura dele próprio.
A catedral de Santiago é superlativa até nos detalhes. O incensório, por exemplo, é o maior do
mundo. Preso na cúpula, pesa
mais de 50 quilos e precisa da força de oito homens para ser balançado sobre o altar principal, de
uma ponta à outra das duas naves
laterais. Hoje em dia, o turíbulo é
usado só em ocasiões especiais,
como em 25 de julho, dia de Santiago, mas na Idade Média o bota-fumeiro tinha utilização frequente. Sem uma grande quantidade
de incenso, o ar na catedral se tornava irrespirável devido à presença de centenas de peregrinos que
lá chegavam depois de caminhadas de até dois anos sem se lavar,
como era o costume.
A visita à catedral vale a viagem.
Para quem não tiver muito tempo
e quiser ter uma visão geral do interior, o melhor ponto de observação é a partir da parte posterior
do altar-mor, onde se encontra
uma imagem de Santiago. A tradição é abraçar o santo por trás,
momento em que se vê a igreja do
alto. Mesmo abstraindo-se o sentido religioso do ritual, a perspectiva do conjunto compensa a
eventual espera na fila.
A catedral de Santiago é importante pelo que mostra e pelo que
esconde. O templo camufla uma
outra camada de história: a da sua
origem. A construção românica
foi erguida no mesmo local em
que havia uma capela do século
9º, destruída pelos Exércitos
mouros que tomaram a cidade.
Essa igreja, cujo tamanho era
equivalente ao do atual altar-mor,
nasceu de uma lenda.
Depois da crucificação de Cristo, o apóstolo Tiago deixou a Judéia para pregar na Galícia. Poucos anos depois, de volta à Palestina, foi decapitado no ano de 44
por ordem de Herodes. Seu corpo
teria então sido levado para a península Ibérica. Segundo a lenda,
oito séculos depois, em 813, um
ermitão localizou seu túmulo
num local indicado por uma chuva de estrelas (o "Campus Stellae", campo de estrelas, que dá
origem a Compostela). O impacto
da descoberta na população levou
o rei a mandar construir no local
uma igreja em homenagem a Santiago. As supostas relíquias do
apóstolo se encontram na cripta
da atual catedral.
Deixando-se a igreja pela frente,
volta-se à praça do Obradoiro, de
onde se admira a catedral de perto. A insuficiência do espaço e as
dimensões da catedral, porém,
podem dificultar a apreensão do
conjunto todo num só olhar
-uma sensação parecida com a
de alguém que se senta na primeira fileira de um cinema com uma
tela muito grande. Por isso, o conjunto arquitetônico também deve
ser observado de longe.
A melhor vista é a do parque
Carvalheira de Santa Suzana, contíguo ao centro histórico. Afastando-se um pouco mais, na mesma
direção, chega-se ao hotel Palacio
del Carmen, que funciona num
antigo convento. A visão da catedral a partir daí vale a caminhada
de dez minutos.
(OSCAR PILAGALLO)
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