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FERNANDO GABEIRA
Deus não usa documento falso
Uma de minhas tarefas
na busca cotidiana de informações é tentar entrar um pouco
na cabeça do homem mais poderoso do mundo para entender o
que acontece nela. Não me refiro
a questões encobertas, como o seu
desejo de se apossar do petróleo,
nem a uma vontade edipiana de
sobrepujar os feitos do pai contra
o mesmo inimigo, Saddam Hussein. É um pouco mais "terra a
terra". Observar seus discursos e
constatar que muitas vezes ele se
sente intermediário de Deus e responsável por uma grandiosa tarefa contra o mal.
O "Washington Post", analisando esse viés permanente no
discurso de George W. Bush, observa que ele não afirma diretamente ser um destinatário de
uma missão divina, mas sempre
deixa isso implícito.
É difícil compreender por que
ele subestima as mortes, o deslocamento de 1 milhão de refugiados, a subnutrição de mulheres
grávidas e de crianças. Esse terrível sofrimento humano é metabolizado, talvez, no circuito divino,
numa visão religiosa repleta de
grandes tragédias.
No entanto ficaria difícil de entender num mensageiro divino o
silêncio diante de denúncias, como as dos técnicos da ONU, de
que os documentos sobre importação de urânio pelo Iraque foram grosseiramente falsificados
pelos norte-americanos. Deus não
usa documentos falsos.
Ao mostrar na ONU uma usina
de armas químicas no Iraque e esconder que ela foi construída pelos ingleses, Washington está falando meias verdades. E Deus supostamente fala toda a verdade.
A mente de dúvidas propõe
aqui uma nova interrogação: não
seria apenas a clássica mistura de
velhacaria política com uma capa
religiosa? Bush não pode ser reduzido a isso. Ele é um ex-alcoólatra
que viveu uma extraordinária
trajetória de auto-renovação e
acha que se capacitou para mudar os destinos do mundo.
Ele fala sempre em dois níveis: o
político e o religioso.
Milhões de norte-americanos
talvez leiam apenas a segunda
parte de seu discurso. Alguns líderes evangélicos chegam a afirmar
que uma força divina orienta sua
tarefa neste momento histórico.
Se articularmos esse movimento com inúmeras decisões conservadoras no campo dos costumes,
como a pregação da abstinência
sexual, veremos que há um componente religioso também nessa
área. Completa-se um esboço,
mas surgem inúmeras zonas de
sombra. Uma delas só poderá ser
esclarecida nesse choque de forças
internas que representou a luta
contra o alcoolismo.
Até que ponto essas forças se
anularam ou se entrelaçaram em
novas combinações, deixando o
alcoolismo no caminho, como
uma casca descartável?
O fato de ser religioso e mover-se num espaço espiritual não define Bush. O mistério é entender
por que sua missão religiosa no
mundo incorpora tão facilmente
a morte de milhões de pessoas, a
dor da separação de tantos desconhecidos que jamais fizeram algum mal a ele ou ao seu país.
Creio enormemente nas lições
da história. Mas um homem como Bush só aceitará no futuro a
dimensão dos seus erros se voltar
um pouco atrás e examinar a
guerra que está dentro dele e que
existe, em certo nível, em todos os
seres humanos.
Não se trata aqui de reafirmar
algo politicamente ingênuo, por
exemplo, que o mundo só mudará quando as pessoas se conhecerem. O mundo vai mudando, as
pessoas se conhecendo, enfim,
não há rígidas separações.
Para alguém que acredita num
Deus diferente do de Bush, para
quem não acredita em nenhum
Deus, é muito difícil encontrar
um ponto de contato para dialogar com ele. Se estivesse em luta
contra o álcool, você poderia dizer: "Nesse ponto, você está delirando". Mas agora que sua trajetória vitoriosa se consumou, ele
pode muito bem dizer: "Vocês é
que estão delirando, porque a
realidade está sendo moldada por
minha saga espiritual".
Numa escala menor do que fez
a Escola de Frankfurt sobre o nazismo, será preciso grande esforço
para explicar as teias psicológicas
do momento da guerra. Bush não
tem atrás de si movimentos políticos ou religiosos fanáticos e manifestações religiosas de massa. O
que ele tem, que lhe foi dado por
Bin Laden, é o grande atentado
de 11 de setembro, uma gigantesca tragédia reproduzida à exaustão pelas televisões do mundo. Ele
cavalga essas imagens das torres
caindo e nos promete levar a um
mundo seguro.
As características do inimigo
que lançou Bush nessa missão redentora acabaram o influenciando. Ambos se sentem cumprindo
uma missão divina, ambos relativizam as milhares de mortes que
a luta produz. Bin Laden ainda
pode afirmar que todos os ocidentais são cúmplices. No universo de
Bush, esse argumento está banido. Talvez a única possibilidade
de evitar a guerra seria uma mobilização religiosa mundial para
falar diretamente com o Bush que
se acha ungido por Deus.
É muito tarde. Resta esperar
uma súbita iluminação, um milagre, um raio. Até agora a única
grande explosão que se ouviu foi
a da mãe de todas as bombas. O
teste da semana passada não é do
tipo de produzir iluminação espiritual. A não ser que ele estoure
sobre você e suas pessoas queridas, como em Hiroshima.
Para descansar um pouco da
cabeça dos grandes líderes, o melhor é se deter só em seu discurso
político. O primeiro-ministro de
Portugal, por exemplo, afirmou
que apóia Bush, mesmo contra a
ONU. Por quê? Os Estados Unidos
são uma democracia, o Iraque,
não. Não deixa de ser uma concepção de democracia achar que
está certo quem é democrata.
Os portugueses, pelo menos, se
deixam abordar pela lógica. Bush
permanece um grande desafio.
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