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São Paulo, segunda-feira, 17 de março de 2003

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FERNANDO GABEIRA

Deus não usa documento falso

Uma de minhas tarefas na busca cotidiana de informações é tentar entrar um pouco na cabeça do homem mais poderoso do mundo para entender o que acontece nela. Não me refiro a questões encobertas, como o seu desejo de se apossar do petróleo, nem a uma vontade edipiana de sobrepujar os feitos do pai contra o mesmo inimigo, Saddam Hussein. É um pouco mais "terra a terra". Observar seus discursos e constatar que muitas vezes ele se sente intermediário de Deus e responsável por uma grandiosa tarefa contra o mal.
O "Washington Post", analisando esse viés permanente no discurso de George W. Bush, observa que ele não afirma diretamente ser um destinatário de uma missão divina, mas sempre deixa isso implícito.
É difícil compreender por que ele subestima as mortes, o deslocamento de 1 milhão de refugiados, a subnutrição de mulheres grávidas e de crianças. Esse terrível sofrimento humano é metabolizado, talvez, no circuito divino, numa visão religiosa repleta de grandes tragédias.
No entanto ficaria difícil de entender num mensageiro divino o silêncio diante de denúncias, como as dos técnicos da ONU, de que os documentos sobre importação de urânio pelo Iraque foram grosseiramente falsificados pelos norte-americanos. Deus não usa documentos falsos.
Ao mostrar na ONU uma usina de armas químicas no Iraque e esconder que ela foi construída pelos ingleses, Washington está falando meias verdades. E Deus supostamente fala toda a verdade.
A mente de dúvidas propõe aqui uma nova interrogação: não seria apenas a clássica mistura de velhacaria política com uma capa religiosa? Bush não pode ser reduzido a isso. Ele é um ex-alcoólatra que viveu uma extraordinária trajetória de auto-renovação e acha que se capacitou para mudar os destinos do mundo.
Ele fala sempre em dois níveis: o político e o religioso.
Milhões de norte-americanos talvez leiam apenas a segunda parte de seu discurso. Alguns líderes evangélicos chegam a afirmar que uma força divina orienta sua tarefa neste momento histórico.
Se articularmos esse movimento com inúmeras decisões conservadoras no campo dos costumes, como a pregação da abstinência sexual, veremos que há um componente religioso também nessa área. Completa-se um esboço, mas surgem inúmeras zonas de sombra. Uma delas só poderá ser esclarecida nesse choque de forças internas que representou a luta contra o alcoolismo.
Até que ponto essas forças se anularam ou se entrelaçaram em novas combinações, deixando o alcoolismo no caminho, como uma casca descartável?
O fato de ser religioso e mover-se num espaço espiritual não define Bush. O mistério é entender por que sua missão religiosa no mundo incorpora tão facilmente a morte de milhões de pessoas, a dor da separação de tantos desconhecidos que jamais fizeram algum mal a ele ou ao seu país.
Creio enormemente nas lições da história. Mas um homem como Bush só aceitará no futuro a dimensão dos seus erros se voltar um pouco atrás e examinar a guerra que está dentro dele e que existe, em certo nível, em todos os seres humanos.
Não se trata aqui de reafirmar algo politicamente ingênuo, por exemplo, que o mundo só mudará quando as pessoas se conhecerem. O mundo vai mudando, as pessoas se conhecendo, enfim, não há rígidas separações.
Para alguém que acredita num Deus diferente do de Bush, para quem não acredita em nenhum Deus, é muito difícil encontrar um ponto de contato para dialogar com ele. Se estivesse em luta contra o álcool, você poderia dizer: "Nesse ponto, você está delirando". Mas agora que sua trajetória vitoriosa se consumou, ele pode muito bem dizer: "Vocês é que estão delirando, porque a realidade está sendo moldada por minha saga espiritual".
Numa escala menor do que fez a Escola de Frankfurt sobre o nazismo, será preciso grande esforço para explicar as teias psicológicas do momento da guerra. Bush não tem atrás de si movimentos políticos ou religiosos fanáticos e manifestações religiosas de massa. O que ele tem, que lhe foi dado por Bin Laden, é o grande atentado de 11 de setembro, uma gigantesca tragédia reproduzida à exaustão pelas televisões do mundo. Ele cavalga essas imagens das torres caindo e nos promete levar a um mundo seguro.
As características do inimigo que lançou Bush nessa missão redentora acabaram o influenciando. Ambos se sentem cumprindo uma missão divina, ambos relativizam as milhares de mortes que a luta produz. Bin Laden ainda pode afirmar que todos os ocidentais são cúmplices. No universo de Bush, esse argumento está banido. Talvez a única possibilidade de evitar a guerra seria uma mobilização religiosa mundial para falar diretamente com o Bush que se acha ungido por Deus.
É muito tarde. Resta esperar uma súbita iluminação, um milagre, um raio. Até agora a única grande explosão que se ouviu foi a da mãe de todas as bombas. O teste da semana passada não é do tipo de produzir iluminação espiritual. A não ser que ele estoure sobre você e suas pessoas queridas, como em Hiroshima.
Para descansar um pouco da cabeça dos grandes líderes, o melhor é se deter só em seu discurso político. O primeiro-ministro de Portugal, por exemplo, afirmou que apóia Bush, mesmo contra a ONU. Por quê? Os Estados Unidos são uma democracia, o Iraque, não. Não deixa de ser uma concepção de democracia achar que está certo quem é democrata.
Os portugueses, pelo menos, se deixam abordar pela lógica. Bush permanece um grande desafio.




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