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FERNANDO GABEIRA
Educar para a liberdade ao som do tiroteio
A crise de segurança no
Rio repercute dentro de casa, onde se torna cada vez mais
difícil definir os contornos de
uma educação adequada. Não se
trata daquela velha história de ficar com o coração na mão quando os adolescentes saem para
uma noitada.
É um problema mais amplo,
que se revela também nos detalhes da vida cotidiana.
Muitos de nós já acordaram de
madrugada com o som de tiroteios. Não é como nos programas
humorísticos, mas acontece de
vez em quando. Ratatatá. As
crianças também acordam e sabem que o bicho pegou não muito
longe de casa. Eram fogos anunciando um bonde? Eram os próprios traficantes disputando espaço? Era a polícia? Como saber
apenas com o matraquear das armas, uma vez que todos, policiais
e bandidos, têm acesso ao mesmo
equipamento, com vantagem para quem tem mais dinheiro e
mais contatos em Miami?
O que pode fazer a educação libertária dos anos 60 diante de um
quadro desses? Ela tem sua fragilidade, já criticada pela própria
geração. Mas com o tempo, o lema da escola britânica Summerhill, liberdade com responsabilidade, foi se reduzindo apenas ao
último termo.
Essa deturpação da perspectiva
pedagógica preparou o terreno
para grandes dificuldades.
No Rio de hoje, você precisa, simultaneamente, educar para a
presença do tráfico de drogas e
para os mínimos reflexos de autodefesa. Isso pode deixar a pessoa
sentindo-se um pouco culpada,
achando que está inibindo a espontaneidade do adolescente.
Mas não dá, por exemplo, para
esquecer a chave na portaria e ficar esperando que alguém abra a
porta, de noite, no escuro. Num
desses momentos de descuido, tudo pode acontecer.
É uma fantasia supor que o
adolescente jamais entrará em
contato com drogas. Mais realista
do que isso é partir do princípio
de que, estatisticamente, a chance
de acontecer é muito grande. Logo, a preparação tem que partir
dessa possibilidade real. Da mesma maneira, é uma ilusão pensar
que vai se viajar de ônibus e jamais ser assaltado.
Quantos celulares, relógios e
cordões serão perdidos até que se
perceba essa realidade? Todas essas pequenas bobagens do cotidiano vão tomando conta da vida
e, de repente, você, do alto de sua
preocupação com o rumo do
mundo, percebe que alguma coisa
está errada perto de você.
Uma das lições do jornalismo
no final da década de 50 dizia
que, se um cachorro morre na sua
rua, isso é mais importante do
que um terremoto na China.
Sempre fui crítico em relação a isso e, no fim do século, já se falava
até que o bater de asas de uma
borboleta na China, quem dirá
um terremoto, teria repercussões
na sua vida.
Reconhecer a importância dessa crise cotidiana não significa
romper com a preocupação planetária. Ao contrário, uma visão
mais precisa de como todos os elementos se interrelacionam é que
poderá nos trazer algum alívio.
Para começar, é preciso, talvez,
reconhecer que sua perspectiva
pedagógica não é a única influência sobre os meninos. Televisão,
escola, amigos, a enorme usina de
identidade que se tornou o consumo, criando novas e, às vezes, artificiais necessidades subjetivas,
tudo isso deveria ser computado,
ainda que seja apenas para atenuar a culpa de quem acha que
algo andou errado em casa.
Num lugar como o Rio, para enfrentar a onda de violência, não
basta apenas que a polícia se organize. Será necessário também
que a própria população se transforme e adote níveis de organização variados. Israel, Cuba e Suíça
são exemplos de saídas nacionais,
cada uma com o seu estilo. Os
próprios norte-americanos, depois do 11 de setembro, exercitam
constantemente os reflexos de defesa da sociedade.
No campo das drogas, o que
predomina hoje não me parece
produtivo. Para começar, a idéia
de guerra contra as drogas. A
simples menção a um estado de
guerra aumenta a necessidade de
consumo. E as campanhas de culpabilização dos consumidores,
por mais bem intencionadas que
sejam, deveriam perceber que a
sensação de culpa pode levar ao
oposto simétrico do que desejam.
No Rio, onde a proximidade do
caos é uma realidade, o peso dos
problemas dificulta o encontro de
certezas. Mas algumas têm de
existir como condição de uma
perspectiva pedagógica.
Enquanto tentamos trabalhar,
aqui embaixo, a onipotência dos
filhos, esquecemos que, lá em cima, onde acontecem os tiroteios,
são garotos de metralhadora na
mão que abrem seu caminho à
bala. É essa nova geração de
olheiros, fogueteiros, gerentes e
seguranças que ocupa os principais espaços do plano de carreira
no tráfico de drogas.
É preciso toda uma política para transição, pois ainda teremos
de esperar toda essa onda, de penas maiores e de novas penitenciárias, para obter algum avanço
no debate, dominado, agora, pelos falcões .
É uma situação que me lembra
dos debates na Comissão de Minorias. A bancada do norte entrava com um grupo do "mata-e-esfola" sempre que o tema eram os
índios. Os mais moderados diziam para nós: "Vamos esperar
essa turma concluir seu recado
para que a gente discuta melhor
nossas divergências".
Pensávamos que, no fundo, estavam articulados. O grupo radical era apenas um bode na sala. O
problema nas questões de segurança é que o bode na sala se recusa a sair, porque representa as
ilusões da maioria. É um "everybode", como dizia meu querido
Chico Nelson.
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