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FERNANDO GABEIRA
Um continente gelado como esperança do planeta
"La nave va" , pensava eu
quando nosso carro entrou diretamente na pista do aeroporto de Punta Arenas, ainda
na semi-escuridão da manhã de
inverno.
Finalmente os boletins meteorológicos prometiam uma janela,
uma conjunção especial de nuvens e nevascas que permitiria
nossa aterrissagem na Antártida.
"Não fique muito otimista", advertiu-me um oficial da Aeronáutica. Outra vez, chegamos perto, e
o tempo fechou. Tivemos que voltar sem conseguir baixar.
Um pouco de otimismo, entretanto, era essencial para manter
uma boa atmosfera no Hércules
C-130. Viajaríamos três horas para chegar até a base chilena e três
horas para voltar a Punta Arenas.
No tanque, havia combustível para uma hora e dez minutos além
do previsto. Quando terminou a
terceira hora de viagem, preparamo-nos para a descida na Antártida, recolhendo luvas, chapéu e
outras peças do equipamento.
A voz do comandante cortou
nosso movimento: estamos sem
condições de baixar, vou continuar sobrevoando a base com a
reserva de combustível que temos.
Em último caso, voltamos direto
para Punta Arenas.
Ficamos de olho no relógio. Cada minuto que passava nos afastava do objetivo, que era descer
na Antártida. Quando os ponteiros apontaram uma hora e dez
minutos de sobrevôo, sentimos
um gosto de derrota. Hora de voltar. No entanto, em vez de voltar,
o Hércules C-130 começou a perder altura. Íamos baixar, de qualquer jeito. Medo e emoção tomaram conta de nós. Era muito tarde para ter medo. Começamos a
torcer desesperadamente para
que a aterrissagem desse certo.
Era isso o que queríamos. No fundo, todos queriam tentar e, além
disso, os pilotos da FAB são feras,
de uma excelência técnica que
poucos brasileiros tiveram a
chance de verificar pessoalmente.
A hora era aquela. Pagamos para ver, e o velho Hércules deslizou
numa pista de neve, ponteada de
luzes vermelhas. Era tudo o que
víamos, além da sensação de que
ele escorregava, dançava, mesmo,
na pista. Quando ele parou, os
chilenos que nos esperavam
aplaudiram os pilotos.
Era bom estar na Antártida e,
sobretudo, estar vivo. Pisávamos
em grossas camadas de neve, e a
sensação térmica era de 30 graus
negativos. Tentei fotografar, minha mão quase congelou. As câmeras enlouqueceram e, quando
fui aquecê-las, percebi que tinha
de cuidar do nariz, pois ele estava
duro e roxo.
Emoção de estar no fim do
mundo, mas, sobretudo, emoção
por estar chegando a um continente de 14 milhões de quilômetros quadrados, com reservas de
proteína no mar, reservas de minerais embaixo da terra e reservas de água (68% da água doce
do mundo). Naquele lado do
mundo, muitos aventureiros
morreram congelados e só agora
a humanidade conseguiu condições técnicas para se fixar lá. Mais
do que isso: conseguiu chegar a
um tratado exemplar, que divide
responsabilidades e congela reivindicações territoriais, uma espécie de vanguarda na experiência de um governo mundial.
A impressão de quem vê a Antártida é a de que tudo foi congelado profundamente. Até certo
ponto, essa impressão é correta,
pois a profundidade média da camada de gelo é de dois quilômetros. Mas a Antártida tem grandes montanhas e até um vulcão
ativo, no monte Erebus.
Estávamos chegando a apenas
uma porta de entrada -a base
Eduardo Frei, onde os chilenos vivem com certo conforto, no interior, e lutam com a natureza para
garantir o que não pode ser transportado. A água é um exemplo.
Cada pessoa tem direito a dois
metros cúbicos por semana de
água, o que obriga a um racionamento meticuloso.
Quem vive naquele universo gelado e varrido por ventos terríveis
não pode contar muito com saídas em caso de urgência. Certas
precauções, como extrair o apêndice antes de se mudar para lá,
são fundamentais.
Nosso objetivo final era a base
brasileira Comandante Ferraz.
Os chilenos nos emprestariam helicópteros, mas a janela se fechou.
Tínhamos de explorar a base,
com a recomendação de não caminharmos sós e de voltarmos a
tempo para levantar vôo. Os minutos eram preciosos. Não havia
animais. Além de seres humanos,
só uma pomba antártica, que se
parece com uma galinha branca e
se mexia na neve.
Saber que o Brasil tinha base lá
-com duas dezenas de militares
e pesquisadores- e que somos
membros consultivos do Tratado
da Antártida não apenas nos enche de orgulho, mas nos abre os
olhos para nossas responsabilidades. Há muito o que decidir sobre
o futuro do continente. Turismo
ou não turismo?
Em caso de turismo, quais são
as limitações naturais que precisam ser delimitadas? No verão,
alguns navios passam por lá e alguns milionários, como Ted Turner, chegam com avião próprio.
Além disso, há o problema da
pesca, que precisa ser monitorada. Os estoques do norte estão se
esgotando, e os navios pesqueiros
convergem para a Antártida. O
oceano Antártico está para a geografia como a santíssima trindade para a religião cristã: são três
oceanos num só, águas ricas em
nutrientes com um crustáceo de
mais ou menos seis centímetros
que é base da cadeia alimentar, o
krill. Quando o krill se desloca, todos vão atrás, os que comem krill
e os que comem quem come krill.
A riqueza da Antártida é tão
promissora que não precisava
acontecer lá o que aconteceu em
outros mares. Os estoques podem
durar para sempre, desde que a
pesca seja sustentável. Calcula-se
que haja 300 milhões de toneladas de estoque de krill, animal
que se reproduz todos os anos. Os
ovos descem a uma profundidade
de quase 2.000 metros. Enfim, nenhum ser humano pode destruí-los antes do tempo.
Era hora de voltar, e eu nem sequer tinha passado em revista
minhas dúvidas sobre a Antártida. Às 15h, o tempo fechou e teríamos de levantar vôo às 16h ou ficaríamos ali, sobrecarregando a
infra-estrutura dos chilenos.
Quando entramos no Hércules
C-130, já estava escuro. Perguntei
ao comandante Ângelo como faríamos. Ele disse que as luzes vermelhas na pista eram a indicação
para definir o momento preciso
de levantar vôo. Nosso avião arrancou, as luzes vermelhas foram
ficando para trás, e ele não conseguiu decolar. Voltamos de marcha à ré pela pista gelada, para
tentar de novo.
Decidi que voltaria à Antártida
no verão e faria tudo para que os
brasileiros se dessem conta desse
importante papel que estamos desempenhando na conservação do
planeta. É preciso falar muito da
Antártida. No último ano, os burocratas queriam destinar apenas
R$ 300 mil para sustentar o trabalho por lá. Seria um verdadeiro
desastre para essa nossa aventura
que pode decidir alguns dos caminhos do século 21.
Quando encontrar todos os bichos e conseguir passar uma parte
do verão no continente, creio que
será possível escrever algo mais
longo sobre o tema.
Para quem se interessa em desenvolvê-lo em escolas, recomendo o livro "O Brasil na Antártida", de Luiz Alexandre Schuch. É
um trabalho patrocinado pela
Comissão Interministerial para
os Recursos do Mar e pela Universidade Federal de Santa Maria. O
tema devia estar em toda parte,
sobretudo nesses tempos em que a
gente duvida do planeta e do nosso país. E, se depender do que se
faz na Antártida, ambos têm excelentes perspectivas.
Este é o quarto texto de uma série de
Fernando Gabeira sobre a Antártida.
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