São Paulo, segunda-feira, 21 de agosto de 2000


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FERNANDO GABEIRA

Um continente gelado como esperança do planeta

"La nave va" , pensava eu quando nosso carro entrou diretamente na pista do aeroporto de Punta Arenas, ainda na semi-escuridão da manhã de inverno.
Finalmente os boletins meteorológicos prometiam uma janela, uma conjunção especial de nuvens e nevascas que permitiria nossa aterrissagem na Antártida.
"Não fique muito otimista", advertiu-me um oficial da Aeronáutica. Outra vez, chegamos perto, e o tempo fechou. Tivemos que voltar sem conseguir baixar.
Um pouco de otimismo, entretanto, era essencial para manter uma boa atmosfera no Hércules C-130. Viajaríamos três horas para chegar até a base chilena e três horas para voltar a Punta Arenas. No tanque, havia combustível para uma hora e dez minutos além do previsto. Quando terminou a terceira hora de viagem, preparamo-nos para a descida na Antártida, recolhendo luvas, chapéu e outras peças do equipamento.
A voz do comandante cortou nosso movimento: estamos sem condições de baixar, vou continuar sobrevoando a base com a reserva de combustível que temos. Em último caso, voltamos direto para Punta Arenas.
Ficamos de olho no relógio. Cada minuto que passava nos afastava do objetivo, que era descer na Antártida. Quando os ponteiros apontaram uma hora e dez minutos de sobrevôo, sentimos um gosto de derrota. Hora de voltar. No entanto, em vez de voltar, o Hércules C-130 começou a perder altura. Íamos baixar, de qualquer jeito. Medo e emoção tomaram conta de nós. Era muito tarde para ter medo. Começamos a torcer desesperadamente para que a aterrissagem desse certo. Era isso o que queríamos. No fundo, todos queriam tentar e, além disso, os pilotos da FAB são feras, de uma excelência técnica que poucos brasileiros tiveram a chance de verificar pessoalmente.
A hora era aquela. Pagamos para ver, e o velho Hércules deslizou numa pista de neve, ponteada de luzes vermelhas. Era tudo o que víamos, além da sensação de que ele escorregava, dançava, mesmo, na pista. Quando ele parou, os chilenos que nos esperavam aplaudiram os pilotos.
Era bom estar na Antártida e, sobretudo, estar vivo. Pisávamos em grossas camadas de neve, e a sensação térmica era de 30 graus negativos. Tentei fotografar, minha mão quase congelou. As câmeras enlouqueceram e, quando fui aquecê-las, percebi que tinha de cuidar do nariz, pois ele estava duro e roxo.
Emoção de estar no fim do mundo, mas, sobretudo, emoção por estar chegando a um continente de 14 milhões de quilômetros quadrados, com reservas de proteína no mar, reservas de minerais embaixo da terra e reservas de água (68% da água doce do mundo). Naquele lado do mundo, muitos aventureiros morreram congelados e só agora a humanidade conseguiu condições técnicas para se fixar lá. Mais do que isso: conseguiu chegar a um tratado exemplar, que divide responsabilidades e congela reivindicações territoriais, uma espécie de vanguarda na experiência de um governo mundial.
A impressão de quem vê a Antártida é a de que tudo foi congelado profundamente. Até certo ponto, essa impressão é correta, pois a profundidade média da camada de gelo é de dois quilômetros. Mas a Antártida tem grandes montanhas e até um vulcão ativo, no monte Erebus.
Estávamos chegando a apenas uma porta de entrada -a base Eduardo Frei, onde os chilenos vivem com certo conforto, no interior, e lutam com a natureza para garantir o que não pode ser transportado. A água é um exemplo. Cada pessoa tem direito a dois metros cúbicos por semana de água, o que obriga a um racionamento meticuloso.
Quem vive naquele universo gelado e varrido por ventos terríveis não pode contar muito com saídas em caso de urgência. Certas precauções, como extrair o apêndice antes de se mudar para lá, são fundamentais.
Nosso objetivo final era a base brasileira Comandante Ferraz. Os chilenos nos emprestariam helicópteros, mas a janela se fechou. Tínhamos de explorar a base, com a recomendação de não caminharmos sós e de voltarmos a tempo para levantar vôo. Os minutos eram preciosos. Não havia animais. Além de seres humanos, só uma pomba antártica, que se parece com uma galinha branca e se mexia na neve.
Saber que o Brasil tinha base lá -com duas dezenas de militares e pesquisadores- e que somos membros consultivos do Tratado da Antártida não apenas nos enche de orgulho, mas nos abre os olhos para nossas responsabilidades. Há muito o que decidir sobre o futuro do continente. Turismo ou não turismo?
Em caso de turismo, quais são as limitações naturais que precisam ser delimitadas? No verão, alguns navios passam por lá e alguns milionários, como Ted Turner, chegam com avião próprio.
Além disso, há o problema da pesca, que precisa ser monitorada. Os estoques do norte estão se esgotando, e os navios pesqueiros convergem para a Antártida. O oceano Antártico está para a geografia como a santíssima trindade para a religião cristã: são três oceanos num só, águas ricas em nutrientes com um crustáceo de mais ou menos seis centímetros que é base da cadeia alimentar, o krill. Quando o krill se desloca, todos vão atrás, os que comem krill e os que comem quem come krill.
A riqueza da Antártida é tão promissora que não precisava acontecer lá o que aconteceu em outros mares. Os estoques podem durar para sempre, desde que a pesca seja sustentável. Calcula-se que haja 300 milhões de toneladas de estoque de krill, animal que se reproduz todos os anos. Os ovos descem a uma profundidade de quase 2.000 metros. Enfim, nenhum ser humano pode destruí-los antes do tempo.
Era hora de voltar, e eu nem sequer tinha passado em revista minhas dúvidas sobre a Antártida. Às 15h, o tempo fechou e teríamos de levantar vôo às 16h ou ficaríamos ali, sobrecarregando a infra-estrutura dos chilenos.
Quando entramos no Hércules C-130, já estava escuro. Perguntei ao comandante Ângelo como faríamos. Ele disse que as luzes vermelhas na pista eram a indicação para definir o momento preciso de levantar vôo. Nosso avião arrancou, as luzes vermelhas foram ficando para trás, e ele não conseguiu decolar. Voltamos de marcha à ré pela pista gelada, para tentar de novo.
Decidi que voltaria à Antártida no verão e faria tudo para que os brasileiros se dessem conta desse importante papel que estamos desempenhando na conservação do planeta. É preciso falar muito da Antártida. No último ano, os burocratas queriam destinar apenas R$ 300 mil para sustentar o trabalho por lá. Seria um verdadeiro desastre para essa nossa aventura que pode decidir alguns dos caminhos do século 21.
Quando encontrar todos os bichos e conseguir passar uma parte do verão no continente, creio que será possível escrever algo mais longo sobre o tema.
Para quem se interessa em desenvolvê-lo em escolas, recomendo o livro "O Brasil na Antártida", de Luiz Alexandre Schuch. É um trabalho patrocinado pela Comissão Interministerial para os Recursos do Mar e pela Universidade Federal de Santa Maria. O tema devia estar em toda parte, sobretudo nesses tempos em que a gente duvida do planeta e do nosso país. E, se depender do que se faz na Antártida, ambos têm excelentes perspectivas.


Este é o quarto texto de uma série de Fernando Gabeira sobre a Antártida.


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