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FERNANDO GABEIRA
O nada franco-atirador de Washington
O franco-atirador de
Washington pode estar preso neste momento. No entanto o
mais certo é que o roteiro de cinema baseado em sua história já tenha a primeira versão, antes mesmo de ele ser achado pela polícia.
De uma forma diferente de Osama bin Laden, o franco-atirador
tornou-se uma figura mundial.
Todos os jornais do mundo falam
de sua van creme ou branca, estudiosos de tarô analisam suas
mensagens e astrólogos tentam
adivinhar pelo mapa astral quando ele voltará a atacar.
Discute-se quem fará o papel de
xerife (Denzel Washington?) e
muitos outros detalhes que o conforto da internet permite. Mas a
vida dos habitantes da região não
está nada fácil. Os conselhos de
segurança servem para aumentar
o medo: não ficar parado, andar
em ziguezague, enfim, agir como
se estivesse na alça de mira do fuzil do franco-atirador, tentando
escapar com vida.
Dizem os especialistas que há
um ponto chamado abricó, entre
o final da coluna e a cabeça, que é
o ideal para o tiro perfeito. A vítima já cai sem sentidos e morre em
poucos segundos. Os "snipers",
franco-atiradores treinados, lançaram uma nota negando ao assassino de Washington essa condição. Eles treinaram para obedecer ordens, ajudar o país, salvar
vítimas. Seu tiro certeiro é um
gesto de patriotismo, que não pode ser confundido com o esporte
macabro de sair atirando em donas-de-casa que saem do supermercado.
Até o momento em que escrevo
estas linhas, o franco-atirador só
tinha sido visto por uma testemunha. Aviões militares iriam sobrevoar a cidade para localizá-lo, todas as câmeras instaladas em lugar público estavam sendo monitoradas com rigor.
Esse franco-atirador não merece ter o nome reservado aos soldados de elite.
É um matador em série com características de um terrorista moderno. Por que moderno? Os terroristas do princípio do século, como na peça "Os Justos", de Albert
Camus, voltavam de uma ação
sem detonar a bomba, porque havia crianças e mulheres inocentes
em torno do arquiduque.
Os terroristas pós-modernos
borraram essa distinção entre
inocentes e soldados armados.
Era uma distinção que sobrevivia
inclusive no direito internacional.
Mas agora, para eles, ninguém é
inocente, todos são culpados por
estarem em Nova York, por exemplo, ou por habitarem um país
aliado aos americanos, ou mesmo
por fazerem turismo em Bali, na
Indonésia ou nas Filipinas.
O matador em série de Washington foi um pouco mais longe.
Em vez de simplesmente apagar a
distinção entre militares em guerra e inocentes, no seu universo
moral, fez uma opção pelos últimos. Uma dona-de-casa, grávida,
fazendo compras para mudar de
apartamento, feliz por ter vencido
o câncer, passa a ser um alvo
ideal.
O destino dos cariocas e dos moradores de Washington tem um
ponto em comum: todos estão
com medo das balas de fuzil. No
Rio, apesar de tudo, a lógica das
noites de tiroteio ainda foi a do
princípio do século: atacar o símbolo do poder, o palácio tropical
do governo.
Mesmo aqui, nada garante previsibilidade nos ataques.
A capital dos Estados Unidos e a
ex-capital brasileira andam em
ziguezague para fugir dos tiros de
fuzil. Aqui, a presença do tráfico
de drogas indica, pelo menos, um
caminho para a busca de saídas.
Mas, e o matador de Washington,
quem poderá analisar adequadamente as causas dos seus crimes e
buscar uma política para que isso
não mais aconteça?
Houve muitas explosões de ódio
nos Estados Unidos. Gente entrando em escola, fuzilando quem
estivesse na frente. Mas o atirador
de Washington é frio e prepara
sua van branca ou creme, Astra
ou Ford, para mais um assassinato, com a calma de quem planeja
uma viagem de férias.
Ele não apenas radicalizou a
desvalorização moderna da vida
humana. Muito possivelmente
perambula pelas ruas em busca
de seres atraentes que possam ser
libertos do inferno de estar no
mundo. Deve se sentir um salvador em busca de quem mereça a
suprema benção de um tiro no
meio da testa.
Vamos esperar um passo em
falso e, finalmente, virá a grande
produção cinematográfica. Sem
nunca deixar de rezar pelas esperanças fuziladas neste princípio
de século.
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