São Paulo, Segunda-feira, 22 de Fevereiro de 1999
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QUALQUER VIAGEM

Paris promove festa para um Lévi-Strauss desbotado

DAVID DREW ZINGG
no ciberespaço

"Não tão velho que não possa imaginar que ainda vai conseguir viver mais um ano." Cícero

O maior intelectual francês vivo é -acho que você concordará comigo nesse ponto- Claude Lévi-Strauss, que é tema de uma edição especial do "Critique", periódico francês dirigido ao público metido a intelectual e que chegou às bancas parisienses uma semana atrás. O lendário antropólogo, nascido na Bélgica, acaba de completar 90 anos.
Tomei conhecimento das aventuras do velho estruturalista no campo da longevidade por meio da Internet.
Para ser mais exato, fui informado do aniversário do grande homem pela minha janela para o mundo predileta na Internet, a revista digital "Slate".
A "Slate" é uma espécie de "New Yorker" para os "digerati" on line (digerati: digital "literati", ou literatos, letrados -deu pra entender?).
Ela é editada por um crítico jovem e brilhante chamado Michael Kinsley, que você talvez se recorde de haver visto ajudando a apresentar o "Crossfire", um programa altamente instigante de discussões políticas que a CNN põe no ar.
(O "Crossfire" foi eliminado da versão latino-americana diluída da CNN, que nós, brazucas, somos gentilmente autorizados a ver pelo grande caipirão norte-americano Ted Turner. O capitão Ted eliminou virtualmente todo o conteúdo interessante da programação da emissora -tudo que pudesse forçar os telespectadores latino-americanos a utilizar a parte pensante de seu corpo.)
Por uma daquelas ironias que iluminam a minha vida, a "Slate" é financiada pelo maior vilão do mundo, o senhor William "Me Chamem de Bill" Gates, mas, ao que parece, Gates não mete o dedo em seu conteúdo editorial, que frequentemente lança farpas em direção à empresa-mãe. Tio Dave recebe dois boletins diários da "Slate".
Fiquei sabendo da senilidade de Lévi-Strauss pelo correspondente da "Slate" em Paris, Jim Holt, que escreve sobre ciências e filosofia para a revista intelectual "Língua Franca" e para o "The Wall Street Journal". O artigo que ele assina é o tipo de trabalho de reportagem na primeira pessoa, que, de modo geral, faz falta ao jornalismo brasileiro. Ela me fez sentir, pela primeira vez, que eu realmente conhecia alguma coisa pessoal, por pequena que fosse, sobre o grande pensador hoje idoso.
Segue o texto de Holt:
"Na semana passada fui a uma recepção oferecida a Lévi-Strauss no Collège de France. À primeira vista, parecia ser um evento como outro qualquer.
"Embora o pátio interno do Collège de France seja grandioso, como cabe à maior instituição acadêmica da república francesa, as salas em seu interior são de proporções mesquinhas e se encontram em mau estado de conservação.
"Os 30 ou 40 acadêmicos presentes tinham um ar deprimente e carcomido, como sói acontecer com acadêmicos. Havia um punhado de jornalistas presentes, mas nada de câmeras ou microfones.
"Energizado por alguns cálices de borgonha de qualidade indiferente, consegui alguém que me apresentasse a Lévi-Strauss, que se ergueu da cadeira com dificuldade e me cumprimentou com mão trêmula. Conversamos pouco, devido tanto a meu francês parco quanto a minha falta de convicção de que aquele nonagenário com quem eu falava pudesse realmente ser Claude Lévi-Strauss.
"Alguns minutos depois, pediram que ele fizesse um pequeno discurso. Lévi-Strauss falou de improviso, sem referir-se a anotações, em voz solene e pausada.
""Montaigne", começou, "disse que a idade nos diminui a cada dia que passa, de tal modo que, quando a morte finalmente chega, ela leva apenas um quarto da metade do homem. Mas Montaigne viveu 59 anos apenas, de modo que não poderia fazer idéia da velhice extrema na qual me encontro hoje" -que, acrescentou, era "uma das surpresas mais curiosas de minha existência'".

Um discurso inesperado
"Ele disse que se sentia como um "holograma espatifado", que perdera sua unidade, mas ainda conservava uma imagem do eu inteiro.
"Não foi o discurso que esperávamos. Foi um discurso em tom íntimo, sobre a morte.
"Lévi-Strauss falou sobre o "diálogo" entre o eu erodido em que se transformara, que descreveu como "le moi real" (o eu real), e o eu ideal que coexistia com ele, "le moi metonymic" (o eu metonímico).
""Este último, planejando novos e ambiciosos projetos intelectuais, diz ao primeiro que ele precisa prosseguir. Mas o primeiro responde que isso é trabalho dele. Só ele consegue enxergar as coisas por inteiro."
"A seguir, Lévi-Strauss agradeceu aos presentes por ajudá-lo a silenciar esse diálogo esdrúxulo, permitindo que suas duas metades voltassem a "coincidir" por um instante -"Se bem que", acrescentou, "eu tenha plena consciência de que o eu real vai continuar a afundar em direção a sua dissolução final".
"Foram palavras bastante comoventes", conclui Holt, "e devo admitir que tive de desviar meus olhos, cerrar os punhos e endireitar os ombros, como convém a um homem que é homem, antes de conseguir sair para a noite chuvosa de Paris à procura de um bom prato de chucrute."

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Tradução de Clara Allain.


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