São Paulo, segunda-feira, 22 de abril de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Escritores incutem no imaginário do Ocidente a impressão de que o local lembra a ilha da fantasia

Ilhas fascinaram autores do porte de Stevenson e Melville

DO ENVIADO ESPECIAL AO HAVAÍ

À época da Corrida do Ouro (1848-9), navegar de San Francisco até o Extremo Oriente demorava 182 dias. Mas, com o El Dorado, um novo barco, o clíper, tomou conta da costa da Califórnia.
Veleiro longo e rápido, com o fundo arredondado a deslizar sobre as águas, o clíper navegava duas vezes mais rápido do que qualquer outra embarcação então existente -e assim encurtou caminhos marítimos, desvelando os mistérios dos mares do Sul.
Mexicana até 1820, a Califórnia logo se tornou o trampolim para explorar o Pacífico no rumo da Polinésia, o conjunto infinito de ilhas explorado de forma sistemática, algumas décadas antes, pelo capitão inglês James Cook, em 1778 e 1779, com financiamento arrumado por John Montagu, o 4º lorde de Sandwich.
No século 19, os clíperes foram substituídos por barcos a vapor. Novamente a navegação se transformou, e uma onda imigratória gigante teve início. A caça às baleias, um negócio movido a óleo, suor, sangue e grandes lucros, como quase tudo nas sociedades industriais então jacentes, tomou conta dos oceanos.
Nessa época um povoado modorrento, Yerba Buena se tornou San Francisco, cidade cosmopolita para onde foram pescadores italianos, dalmacianos e gregos.
Espanhóis, alemães e escandinavos também foram tentar a sorte em torno do porto em franco progresso; carpinteiros se tornaram armadores; e mesmo escritores importantes para lá se dirigiram, à procura de uma Golden Gate para o sucesso literário.
Notadamente a partir de 1871, quando teve início a construção das primeiras estradas de ferro, contingentes expressivos de chineses e de habitantes das ilhas Sandwich (hoje Havaí) também foram levados à Califórnia.
Nascido na Escócia, em 1840, Robert Louis Stevenson também partiu para os mares do Sul, deixando a baía de San Francisco para trás em 1888, a bordo do veleiro Casco, e chegou a Oahu, no Havaí, em 1889.
Autor dos clássicos "O Médico e o Monstro" e "A Ilha do Tesouro", Stevenson viveu 44 anos e escreveu 30 livros. Quando partiu para a Polinésia, em busca de saúde, sabia que encontraria inspiração e aventura naquele conjunto fantástico de ilhas, onde os nativos não conheciam a escrita.
Viajante inveterado, o escritor estabeleceu-se inicialmente no Havaí e, com o ocaso da monarquia nativa e a morte de seu amigo, o rei Kalakaua, ocorrida num quarto de hotel na cidade de San Francisco em 1891, partiu para Samoa, onde construiu uma casa com madeira do tipo "redwood", que capitães de barco lhe traziam da Califórnia.
Nessas ilhas, onde a antropofagia não era uma manifestação literária, Stevenson encarnou a figura de semideus, abraçando a Polinésia, seus mitos e sua gente como um náufrago agarra destroços do navio.
Em Samoa, mesmo hoje, a simples enunciação de suas iniciais se transforma em reverência.
Defensor de chefes e realezas nativas contra a já enunciada ambição das potências de então (EUA, Inglaterra, França e Alemanha), de olho na posição estratégica desses incontáveis arquipélagos, Stevenson esteve, a despeito de seu prestígio intelectual, a um passo da prisão, em 1893.
Robert Louis Stevenson morreu em Samoa, em 1894, vitimado por uma hemorragia cerebral. Seu grande amigo, H.J. Moors, leu a notícia num telegrama, em Nova Orleans.
Mas, enquanto viveu intensamente na Polinésia, interessado na história dessas ilhas onde o memorialismo dos nativos substituía a falta de escribas, RLS empreendeu, partindo do Havaí e de Samoa, cruzeiros por arquipélagos longínquos, como Marquesas, Marshal, Tonga e Fiji, muitas vezes de carona nos vapores que faziam o serviço postal.
A verdadeira razão de sua idolatria por parte dos polinésios era cultural antes de ser política. Stevenson estabeleceu a conexão entre as várias línguas da Polinésia e compilou lendas nativas, sendo, por isso, chamado de Tusitala, ou "contador de histórias".

Viajando em letras
Outros escritores também podem ser responsabilizados pela imagem de fascínio do Havaí e da Polinésia. Nomes como Mark Twain, Herman Melville e Jack London levaram para os livros o feitiço daqueles arquipélagos recém-descobertos pelo mundo dito civilizado.
Autor de "Moby Dick", o grande romance ambientado na era dos navios baleeiros, Melville afirmou que RLS tocou os mares do Sul como nenhum outro escritor na história da literatura.
Jornalista e correspondente de guerra, autor de livros de aventura como "O Lobo e o Mar" e "A Travessia do Snark", London -nome de pluma de John Griffith- nasceu em San Francisco em 1876 e, como Stevenson, também navegou por mares longínquos: esteve no Havaí, no Taiti, em Samoa e nas ilhas Salomão.
Autor de um texto fervilhante sobre o surfe na praia de Waikiki, em Oahu, Jack London partiu de San Francisco num veleiro inacabado que fazia água por toda parte, o Snark, em 1907.
Aventureiro enlouquecido no sentido próprio do termo, o escritor, que morreu na Califórnia em 1916, pouco sabia na ocasião sobre os costumes exóticos dos mares do Sul, mas deixou descrições penetrantes da geografia e do modo de vida dos polinésios num tempo heróico -e traiçoeiro-, em que esses arquipélagos, notadamente o Havaí, experimentavam seu primeiro contato escancarado com o Ocidente.
(SILVIO CIOFFI)


Texto Anterior: Pacotes
Próximo Texto: London vibrou com o homem sobre as ondas
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.