São Paulo, segunda-feira, 22 de abril de 2002

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FERNANDO GABEIRA

O que contam os passarinhos

Um dos clássicos da literatura ecológica é o livro "A Primavera Silenciosa", de Rachel Carlson, lançado em 1962 nos Estados Unidos. Trata do uso de DDT e outros pesticidas na agricultura. Al Gore, vice de Clinton que perdeu para Bush, escreveu no seu próprio livro que a questão ambiental de "A Primavera Silenciosa" comoveu toda a sua família, que costumava discuti-la nas reuniões domésticas.
O livro de Carlson falava de um mundo sem pássaros e insetos, arrasados pela carga de agrotóxicos que as fazendas americanas estavam usando. Já se vão 40 anos e surge, agora, nos Estados Unidos, um novo livro sobre o tema. Não mais uma denúncia apaixonada, mas um ensaio científico chamado "The Forgotten Pollinators" (os polinizadores esquecidos), assinado por dois entomologistas, Sthepen Buchmann e Gary Paul Nabham.
Os insetos carregam o pólen que fecunda as flores. Se desaparecem, a produção de sementes e frutos é inviável.
Os pássaros também têm um papel fundamental no processo de fecundação da terra. Eles comem aqui e ali, voam, fazem cocô e com isso vão fertilizando as áreas por onde viajam.
Se o Brasil é uma potência mundial em alguma coisa, é no campo da biodiversidade, uma riqueza cujo potencial será plenamente desenvolvido no século 21. As causas que arrasaram insetos e pássaros estão presentes aqui, também, em grandes proporções: desmatamento, poluição industrial, abuso de pesticidas.
Se a ciência revela os mecanismos perversos que estão reduzindo a produtividade das lavouras, ela também é responsável pelas falsas ilusões de que vamos dar um salto com a pesquisa de novos inseticidas e com a biotecnologia prometendo aumentar a produção mundial de alimentos, através dos transgênicos.
É preciso estabelecer uma aliança com esse setor da ciência que ilumina os processos naturais e tentar deter o aniquilamento dos insetos e dos pássaros.
No caso dos pássaros, é triste ver como estão desaparecendo em comparação com nossa infância. É preciso criar um departamento nacional para cuidar deles, pelo menos em homenagem a dois brasileiros que por estudo e amor os colocaram no centro de suas vidas: Augusto Ruschi, que conhecia e amava os beija-flores, e Tom Jobim, que descrevia como ninguém nossos pássaros e os cantava nos seus versos.
Além de sua função no processo natural, os pássaros brasileiros representam também um grande potencial turístico para os observadores, que saem de vários países do Norte para gravar seus trinados e documentar sua vida.
Os pássaros do Brasil, que para os mais antigos são uma saudade dolorida, podem ser vistos também como uma espécie de recurso econômico. Pode-se argumentar: "Por que botar dinheiro para salvar os pássaros se há tanta gente morrendo de fome?"
Acontece que essas duas coisas estão, até certo ponto, entrelaçadas, pois as causas que os matam também estão matando a terra e as nascentes dos rios.
Existe uma outra questão que precisa ser respondida. Um programa nacional de proteção aos pássaros não poderia ser financiado pelo Brasil. Os pássaros voam de um lugar para o outro e nem todos vivem apenas no nosso território. Um programa desse tipo estaria atacando um problema planetário e mereceria financiamento internacional.
Se pelo menos fizéssemos um programa amplo, teríamos condições de trabalhá-lo nos países do Norte, no quadro de nossa política externa. Falar de pássaros entre diplomatas? Sim, é o que estou propondo.
A política externa do Brasil, cujo fundamento é a luta pela paz, poderia ter um outro pilar, baseado não em nossas características culturais, mas em nosso potencial biológico.
Há um imenso boqueirão que pode ser trilhado. Os Estados Unidos declinam esse papel, como demonstraram ao se negarem a ratificar o Protocolo de Kyoto.
Esta semana, o Brasil dará o primeiro passo para a ratificação. Iremos à África do Sul com algum dever de casa para apresentar na Rio + 10, a conferência que dará o balanço do grande debate travado aqui em 1992.
Não basta cumprir o dever de casa e ficar no pelotão do meio. Da posição extremamente defensiva que tínhamos na chamada Nova República, poderemos buscar uma nova atitude, assumindo a responsabilidade de um detentor de recursos vitais para a humanidade, plantas, microrganismos, água doce.
Nossas condições ambientais não são as melhores. No entanto poderíamos demonstrar uma vontade de atenuá-las no que depender de nosso esforço interno. Com isso ficaríamos menos vulneráveis no papel de uma vanguarda necessária para articular ações internacionais voltadas para o ambiente.
Vamos ficar um pouco por aqui. O lançamento do Sivam nos próximos meses vai nos dotar de um sistema de vigilância eletrônica da Amazônia capaz de reunir milhares de dados, usando satélites, radares, aviões, supercomputadores.
O que vamos fazer com isso, além de proteger a Amazônia, fundamentar políticas públicas, localizar os recursos naturais?
Vejo nele um poderoso instrumento de política externa. Poderemos unir os vizinhos amazônicos numa rede de informações, socializando com eles os dados e realizando tarefas para levantar também a riqueza dos outros.
Trabalhando diariamente com os pepinos ambientais, eu não deveria ser nem um pouco otimista. Mas, quando vejo essa combinação de uma potência em biodiversidade e um aparato de monitoramento ambiental singular no planeta, pressinto a possibilidade de ocuparmos um novo papel, ampliando as qualidades que o Brasil revela ao mundo -o gosto pela paz e, em sintonia com ele, o amor aos pássaros e à mata.
Nesse esboço estratégico, muita coisa mudaria no Brasil. Nosso sobrenome mais comum é Silva. Às vezes temos um pouco de vergonha dele. Talvez porque, para os esnobes, dê a impressão de que a pessoa é pobre e sem antepassados nobres. "Silva" quer dizer "selva". O problema é que a selva também foi vítima de inúmeros preconceitos. Agora que a mata começa a ser reavaliada como um recurso da humanidade, seria bastante fácil na nossa auto-representação admitir que somos um país de Silvas. E termos orgulho disso.
Lembro-me de uma grande conferência internacional em Haia, na Holanda. Fomos para lá fazer pressão. Sarney, na época, não quis ir, porque tinha medo de se tornar o vilão do ambiente. As campanhas do tipo "queime um brasileiro antes que ele queime a floresta" eram feitas com raiva no exterior.
Justiça feita, o próprio Sarney começou a dar a volta por cima oferecendo o Brasil como sede da conferência de 92. Mudamos muito de lá para cá. É razoável, portanto, sonhar com novas mudanças na próxima década.



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