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FERNANDO GABEIRA
O que contam os passarinhos
Um dos clássicos da literatura ecológica é o livro "A
Primavera Silenciosa", de Rachel
Carlson, lançado em 1962 nos Estados Unidos. Trata do uso de
DDT e outros pesticidas na agricultura. Al Gore, vice de Clinton
que perdeu para Bush, escreveu
no seu próprio livro que a questão
ambiental de "A Primavera Silenciosa" comoveu toda a sua família, que costumava discuti-la
nas reuniões domésticas.
O livro de Carlson falava de um
mundo sem pássaros e insetos, arrasados pela carga de agrotóxicos
que as fazendas americanas estavam usando. Já se vão 40 anos e
surge, agora, nos Estados Unidos,
um novo livro sobre o tema. Não
mais uma denúncia apaixonada,
mas um ensaio científico chamado "The Forgotten Pollinators"
(os polinizadores esquecidos), assinado por dois entomologistas,
Sthepen Buchmann e Gary Paul
Nabham.
Os insetos carregam o pólen que
fecunda as flores. Se desaparecem, a produção de sementes e
frutos é inviável.
Os pássaros também têm um
papel fundamental no processo
de fecundação da terra. Eles comem aqui e ali, voam, fazem cocô
e com isso vão fertilizando as
áreas por onde viajam.
Se o Brasil é uma potência
mundial em alguma coisa, é no
campo da biodiversidade, uma riqueza cujo potencial será plenamente desenvolvido no século 21.
As causas que arrasaram insetos e
pássaros estão presentes aqui,
também, em grandes proporções:
desmatamento, poluição industrial, abuso de pesticidas.
Se a ciência revela os mecanismos perversos que estão reduzindo a produtividade das lavouras,
ela também é responsável pelas
falsas ilusões de que vamos dar
um salto com a pesquisa de novos
inseticidas e com a biotecnologia
prometendo aumentar a produção mundial de alimentos, através dos transgênicos.
É preciso estabelecer uma aliança com esse setor da ciência que
ilumina os processos naturais e
tentar deter o aniquilamento dos
insetos e dos pássaros.
No caso dos pássaros, é triste ver
como estão desaparecendo em
comparação com nossa infância.
É preciso criar um departamento
nacional para cuidar deles, pelo
menos em homenagem a dois
brasileiros que por estudo e amor
os colocaram no centro de suas vidas: Augusto Ruschi, que conhecia e amava os beija-flores, e Tom
Jobim, que descrevia como ninguém nossos pássaros e os cantava nos seus versos.
Além de sua função no processo
natural, os pássaros brasileiros
representam também um grande
potencial turístico para os observadores, que saem de vários países do Norte para gravar seus trinados e documentar sua vida.
Os pássaros do Brasil, que para
os mais antigos são uma saudade
dolorida, podem ser vistos também como uma espécie de recurso
econômico. Pode-se argumentar:
"Por que botar dinheiro para salvar os pássaros se há tanta gente
morrendo de fome?"
Acontece que essas duas coisas
estão, até certo ponto, entrelaçadas, pois as causas que os matam
também estão matando a terra e
as nascentes dos rios.
Existe uma outra questão que
precisa ser respondida. Um programa nacional de proteção aos
pássaros não poderia ser financiado pelo Brasil. Os pássaros
voam de um lugar para o outro e
nem todos vivem apenas no nosso
território. Um programa desse tipo estaria atacando um problema planetário e mereceria financiamento internacional.
Se pelo menos fizéssemos um
programa amplo, teríamos condições de trabalhá-lo nos países do
Norte, no quadro de nossa política externa. Falar de pássaros entre diplomatas? Sim, é o que estou
propondo.
A política externa do Brasil, cujo fundamento é a luta pela paz,
poderia ter um outro pilar, baseado não em nossas características
culturais, mas em nosso potencial
biológico.
Há um imenso boqueirão que
pode ser trilhado. Os Estados Unidos declinam esse papel, como demonstraram ao se negarem a ratificar o Protocolo de Kyoto.
Esta semana, o Brasil dará o
primeiro passo para a ratificação.
Iremos à África do Sul com algum
dever de casa para apresentar na
Rio + 10, a conferência que dará o
balanço do grande debate travado aqui em 1992.
Não basta cumprir o dever de
casa e ficar no pelotão do meio.
Da posição extremamente defensiva que tínhamos na chamada
Nova República, poderemos buscar uma nova atitude, assumindo
a responsabilidade de um detentor de recursos vitais para a humanidade, plantas, microrganismos, água doce.
Nossas condições ambientais
não são as melhores. No entanto
poderíamos demonstrar uma
vontade de atenuá-las no que depender de nosso esforço interno.
Com isso ficaríamos menos vulneráveis no papel de uma vanguarda necessária para articular
ações internacionais voltadas para o ambiente.
Vamos ficar um pouco por aqui.
O lançamento do Sivam nos próximos meses vai nos dotar de um
sistema de vigilância eletrônica
da Amazônia capaz de reunir milhares de dados, usando satélites,
radares, aviões, supercomputadores.
O que vamos fazer com isso,
além de proteger a Amazônia,
fundamentar políticas públicas,
localizar os recursos naturais?
Vejo nele um poderoso instrumento de política externa. Poderemos unir os vizinhos amazônicos numa rede de informações,
socializando com eles os dados e
realizando tarefas para levantar
também a riqueza dos outros.
Trabalhando diariamente com
os pepinos ambientais, eu não deveria ser nem um pouco otimista.
Mas, quando vejo essa combinação de uma potência em biodiversidade e um aparato de monitoramento ambiental singular no
planeta, pressinto a possibilidade
de ocuparmos um novo papel,
ampliando as qualidades que o
Brasil revela ao mundo -o gosto
pela paz e, em sintonia com ele, o
amor aos pássaros e à mata.
Nesse esboço estratégico, muita
coisa mudaria no Brasil. Nosso
sobrenome mais comum é Silva.
Às vezes temos um pouco de vergonha dele. Talvez porque, para
os esnobes, dê a impressão de que
a pessoa é pobre e sem antepassados nobres. "Silva" quer dizer
"selva". O problema é que a selva
também foi vítima de inúmeros
preconceitos. Agora que a mata
começa a ser reavaliada como um
recurso da humanidade, seria
bastante fácil na nossa auto-representação admitir que somos
um país de Silvas. E termos orgulho disso.
Lembro-me de uma grande
conferência internacional em
Haia, na Holanda. Fomos para lá
fazer pressão. Sarney, na época,
não quis ir, porque tinha medo de
se tornar o vilão do ambiente. As
campanhas do tipo "queime um
brasileiro antes que ele queime a
floresta" eram feitas com raiva no
exterior.
Justiça feita, o próprio Sarney
começou a dar a volta por cima
oferecendo o Brasil como sede da
conferência de 92. Mudamos
muito de lá para cá. É razoável,
portanto, sonhar com novas mudanças na próxima década.
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