São Paulo, segunda-feira, 22 de julho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FERNANDO GABEIRA

Um ritmo tropical de mudanças

Cada vez que me sinto desanimado com o curso das coisas no Brasil, procuro olhar para a sociedade em movimento. Leis, mídia, políticos, empresários, intelectuais, todos ficam um pouco desfocados diante da incessante mutação do Brasil real.
Um exemplo recente é a necessária distribuição de seringas para usuários de drogas injetáveis. As experiências pioneiras em Santos, com David Capistrano, no Rio e em Salvador foram sufocadas pela Polícia Federal. De acordo com a lei, argumentavam os delegados, quem distribuísse novas seringas para usuários estava estimulando o uso de drogas.
Até hoje a lei não mudou, porque os políticos não se entenderam a respeito da mudança. No entanto a distribuição de seringas já é uma realidade em muitas capitais do Brasil. Ninguém está sendo preso, mesmo porque, se alguém tivesse de ir para a cadeia, nesse caso, o alvo seria o ministro da Saúde, que encampou a troca de seringas no quadro da luta contra a pandemia da Aids.
Outro exemplo desse curso das coisas é o serviço militar obrigatório. Faz quase uma década que tentamos implantar o serviço militar facultativo em tempos de paz. Por uma série de razões legítimas, as autoridades militares são contra dar o passo que muitos países já adotaram, inclusive a vizinha Argentina. Para não desagradar aos militares, os políticos não ousam avançar no debate.
A única resposta positiva que tivemos até agora foi a dos metalúrgicos de São Paulo, que também se mostram favoráveis ao serviço facultativo.
Enquanto esses longos partos não se resolvem, a realidade vai abrindo seu caminho. A frase de Guimarães Rosa "o que tem de ser tem muita força" acaba funcionando como um bálsamo para aqueles que não acreditam em mudanças no horizonte.
A crise das finanças públicas acabou devastando o orçamento militar. Somos forçados a reduzir o tempo de serviço e o número de soldados, entre os que foram aprovados pelo exame médico.
O clássico argumento de que os jovens das classes mais baixas precisam do Exército como uma espécie de ponte para se integrar à sociedade não deve ser contestado. Ele merece apoio. No entanto não é preciso ir muito longe para constatar que, se todos os jovens necessitados entrarem no Exército, não haverá dinheiro para mantê-los na caserna.
No contexto de penúria econômica, que não será superada em 2003, a julgar pela conjuntura internacional, prosseguiremos com as limitações. Por que não admitir que nem todos os que forem chamados serão incorporados?
Se aceitarmos a realidade inexorável, chegaremos à conclusão de que é preciso selecionar. Concordamos com a tese de que os pobres têm prioridade. Por que não concordar com a de que os que desejam ser soldados também deveriam ter prioridade? Qual é a vantagem de incorporar alguém contra a vontade, deixando de fora centenas de candidatos que gostariam de entrar no Exército?
A gente continua argumentando, para não perder o costume. No fundo, sabemos que a força das coisas vai impor o seu rumo. Tanto a troca de seringas descartáveis quanto o serviço militar obrigatório, com Forças Armadas profissionais, são idéias que nasceram das necessidades práticas.
Elas podem nos dar o luxo de continuar com uma lei que penaliza a troca de seringas e com outra que torna o serviço militar obrigatório. Permitem que mantenhamos intocadas as ilusões sobre o mundo real, desde que deixemos que ele siga seu rumo.
Isso não significa que as mudanças sejam uma espécie de fenômeno natural e que o debate de idéias não contribua decididamente com elas. Para todos os que lutam por novas tendências, há consolo nesta frase de Dean Rusk, escrita na revista "Time", em 1963: "O fluxo dos eventos se move tão rápido que, a não ser que mantenhamos os olhos fixos no amanhã, perderemos totalmente o contato com o hoje".


Texto Anterior: Noronha: Abav abre representação no arquipélago
Próximo Texto: Panorâmica: Itaipava: Pousada Cheiro do Campo tem massagem e fitness
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.