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FERNANDO GABEIRA
Um ritmo tropical de mudanças
Cada vez que me sinto desanimado com o curso das
coisas no Brasil, procuro olhar
para a sociedade em movimento.
Leis, mídia, políticos, empresários, intelectuais, todos ficam um
pouco desfocados diante da incessante mutação do Brasil real.
Um exemplo recente é a necessária distribuição de seringas para usuários de drogas injetáveis.
As experiências pioneiras em
Santos, com David Capistrano,
no Rio e em Salvador foram sufocadas pela Polícia Federal. De
acordo com a lei, argumentavam
os delegados, quem distribuísse
novas seringas para usuários estava estimulando o uso de drogas.
Até hoje a lei não mudou, porque os políticos não se entenderam a respeito da mudança. No
entanto a distribuição de seringas
já é uma realidade em muitas capitais do Brasil. Ninguém está
sendo preso, mesmo porque, se alguém tivesse de ir para a cadeia,
nesse caso, o alvo seria o ministro
da Saúde, que encampou a troca
de seringas no quadro da luta
contra a pandemia da Aids.
Outro exemplo desse curso das
coisas é o serviço militar obrigatório. Faz quase uma década que
tentamos implantar o serviço militar facultativo em tempos de
paz. Por uma série de razões legítimas, as autoridades militares
são contra dar o passo que muitos
países já adotaram, inclusive a vizinha Argentina. Para não desagradar aos militares, os políticos
não ousam avançar no debate.
A única resposta positiva que tivemos até agora foi a dos metalúrgicos de São Paulo, que também se mostram favoráveis ao
serviço facultativo.
Enquanto esses longos partos
não se resolvem, a realidade vai
abrindo seu caminho. A frase de
Guimarães Rosa "o que tem de
ser tem muita força" acaba funcionando como um bálsamo para
aqueles que não acreditam em
mudanças no horizonte.
A crise das finanças públicas
acabou devastando o orçamento
militar. Somos forçados a reduzir
o tempo de serviço e o número de
soldados, entre os que foram
aprovados pelo exame médico.
O clássico argumento de que os
jovens das classes mais baixas
precisam do Exército como uma
espécie de ponte para se integrar à
sociedade não deve ser contestado. Ele merece apoio. No entanto
não é preciso ir muito longe para
constatar que, se todos os jovens
necessitados entrarem no Exército, não haverá dinheiro para
mantê-los na caserna.
No contexto de penúria econômica, que não será superada em
2003, a julgar pela conjuntura internacional, prosseguiremos com
as limitações. Por que não admitir que nem todos os que forem
chamados serão incorporados?
Se aceitarmos a realidade inexorável, chegaremos à conclusão
de que é preciso selecionar. Concordamos com a tese de que os pobres têm prioridade. Por que não
concordar com a de que os que
desejam ser soldados também deveriam ter prioridade? Qual é a
vantagem de incorporar alguém
contra a vontade, deixando de fora centenas de candidatos que
gostariam de entrar no Exército?
A gente continua argumentando, para não perder o costume.
No fundo, sabemos que a força
das coisas vai impor o seu rumo.
Tanto a troca de seringas descartáveis quanto o serviço militar
obrigatório, com Forças Armadas
profissionais, são idéias que nasceram das necessidades práticas.
Elas podem nos dar o luxo de
continuar com uma lei que penaliza a troca de seringas e com outra que torna o serviço militar
obrigatório. Permitem que mantenhamos intocadas as ilusões sobre o mundo real, desde que deixemos que ele siga seu rumo.
Isso não significa que as mudanças sejam uma espécie de fenômeno natural e que o debate de
idéias não contribua decididamente com elas. Para todos os que
lutam por novas tendências, há
consolo nesta frase de Dean Rusk,
escrita na revista "Time", em
1963: "O fluxo dos eventos se move tão rápido que, a não ser que
mantenhamos os olhos fixos no
amanhã, perderemos totalmente
o contato com o hoje".
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