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"RECUERDO"
Passeio por ícones em Buenos Aires, como o Café Tortoni, ao entardecer, mostra que centro continua carismático
Sob garoa, realismo fantástico toma capital
EDNEY CIELICI DIAS
ENVIADO ESPECIAL A BUENOS AIRES
É fim de tarde e cai uma garoa
fria. Fecha-se o sobretudo, cobre-se a cabeça com o chapéu. Melhor
que seja assim nesse passeio.
Vamos pela calle Florida. Com a
luz do dia indo embora, as vitrines se destacam mais. Encontramos sempre brasileiros a observá-las. Há dez anos, com o peso equiparado ao dólar, tudo era inacessível ao padrão brasileiro. Mas,
antes disso, ia-se à Argentina para
fazer compras. As gangorras cambiais empurram turistas de ocasião a um e a outro país. Hoje, real
e peso estão parelhos. As vitrines
ficaram mais tentadoras.
Mas as compras não nos interessam hoje. Se quiser, já que estamos aqui, vamos a um shopping
antigo, de inspiração parisiense:
as Galerias Pacífico, fundadas em
1800 para serem o Bon Marché
portenho. Lembremos, contudo,
de que shopping é shopping e não
convém perder muito tempo.
Os famosos murais da galeria
estão conservados, como na época do último restauro, há 12 anos.
Eles foram realizados em 1945 por
cinco artistas importantes no cenário latino-americano (Lino Spilimbergo, Antonio Berni, Juan
Carlos Castagnino, Manuel Colmeiro, Demetrio Urruchúa).
No mesmo prédio, poderíamos
ver alguma exposição no centro
cultural. Mas queremos mesmo é
desfrutar essas ruas. Vamos prosseguir sob a garoa.
Na avenida Sáenz Peña, pegamos à esquerda e entramos na catedral de Buenos Aires. Há uma
cerimônia militar no túmulo de
San Martín, herói da independência. A igreja mais parece um templo da Antiguidade. Ao sair dela,
deparamos com uma praça de
Maio hoje sem mães e sem protestos, embora elas se manifestem
frequentemente no local.
A cidade está calma. Parece
uma versão "soft" para turistas.
Atravessamos a praça em direção
à Casa Rosada, a sede de governo.
Meia-volta. Seguimos em direção ao Café Tortoni. Nas mesas de
carvalho e mármore verde, servem-nos chocolate quente e churros. O estabelecimento do século
19 é uma outra lembrança de Paris. O fundador foi um francês,
que tomou o nome emprestado
de um café parisiense da época,
no Boulevard des Italiens.
A história do café se confunde
com a da cidade. A lista de frequentadores ilustres é vasta e nela
se inclui o próprio Carlos Gardel.
Também o escritor Jorge Luis
Borges e seu grupo de amigos ajudaram a tornar célebre o número
825 da avenida de Maio.
O realismo fantástico parece ter
impregnado a atmosfera do local.
Dá até vontade de inventar, de
mudar a genealogia das coisas. O
Tortoni, criemos uma teoria, é
atemporal, existia antes mesmo
da cidade, que foi construída apenas para circundar o café e entreter os fregueses...
Mas não vamos nos deter demasiadamente em um local. A
noite está caindo, e queremos
continuar. O Tortoni tem ótimos
concorrentes, melhor dizendo, irmãos. Repare bem, cada café tem
uma atmosfera própria.
Há vários sebos nas ruas do centro. É impossível deixar de dar ao
menos uma olhadinha -livros,
gibis, discos de todos os tipos.
Em dado momento, cruzamos a
Nove de Julio. No centro, o obelisco, um dos símbolos da cidade, já
está iluminado. A avenida é uma
referência exagerada aos bulevares parisienses -com mais de
cem metros de largura, parece ser
a encarnação do bulevar absoluto.
É noite. Vamos em direção ao
Congresso, palco da crise institucional recente. Não conseguiam
manter um presidente depois da
renúncia de De la Rúa. As depredações e os conflitos não parecem
ter ocorrido por aqui.
Começam os trabalhos nos restaurantes. Garçons limpam as
mesas. Grandes quantidades de
carne crua são colocadas sobre as
grelhas. O Pantagruel dos pampas
vem para o jantar.
Pegamos a avenida Callao. Um
ambiente escuro nos chama a
atenção. Mais que crua, a carne é
viva. É o Pelvis Bar, em que as
atendentes trabalham de lingerie.
Algumas coisas não são as mesmas. Há dez anos não se viam
mendigos, não se falava de violência. As crises trouxeram danos
profundos. O centro, contudo,
não perdeu o seu carisma.
Entramos na avenida Corrientes. As luzes dos teatros têm muita
vida e desafiam os cenários econômicos. Vamos procurar aquela
livraria grande. Café enquanto folheamos alguns volumes.
Sim, em Buenos Aires há muitas
referências a Paris. Mas elas ganharam identidade própria e viraram outra coisa.
De novo na rua. Fechamos os
olhos e escutamos ao longe o
chiado de um velho disco de tango. Sem que percebamos, o milagre acontece.
Chegamos a uma avenida definitiva, que contém todas as noites
de Buenos Aires. Ela não tem começo nem fim e só dura uma fração de segundo.
Edney Cielici Dias viajou a convite das
Aerolineas Argentinas, dos hotel Sheraton Libertador e da Ski Network.
Na internet:
www.galeriaspacifico.com.ar
www.cafetortoni.com.ar
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