São Paulo, segunda-feira, 23 de dezembro de 2002

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FERNANDO GABEIRA

Santo Amaro da Purificação e a profecia de Caetano

"Purificar o Subaé/ Mandar os malditos embora." A música de Caetano Veloso que fala de um progresso vazio, matando mariscos e peixes do rio, foi a poética intuição de um dos mais graves problemas ambientais do Brasil. Talvez nem ele, no momento em que compôs "Purificar o Subaé", tinha a consciência exata do legado que uma fábrica de chumbo francesa deixou em sua cidade natal, Santo Amaro (BA). São 500 mil toneladas de apara de chumbo que contaminaram as pessoas, as ruas, o rio Subaé e o estuário da baía de Todos os Santos.
Subsidiária da Penarroya, a fábrica quebrou em 1993. Mas a montanha de chumbo ficou. Parte correu o Subaé, parte foi usada em calçamento e até em pátios de escolas. Os resultados começaram a aparecer com pesquisas das universidades da Bahia e de São Paulo. Uma delas, dirigida pelo professor Fernando de Carvalho, constatou um alto nível de contaminação nos moradores locais.
A outra, a dos paulistas, concentrou-se no lugar das fábricas. Alguns grupos trabalham também nas escolas, em busca do vestígio do chumbo no pátio e no sangue das crianças.
O processo foi possível porque nem todos conheciam o perigo do metal. Pensavam que era possível reforçar o calçamento com ele e usaram as aparas em outras funções, potencializando os riscos.
Faz um ano que se tenta uma saída para abordar o drama, sem estardalhaço. O primeiro grande problema é o que fazer com o chumbo que ainda está lá. Por ordem da Justiça foi enterrado e hoje aflora à superfície zombando da ingenuidade da medida.
Há projetos para revendê-lo a algumas indústrias que podem aproveitá-lo. Um ecologista francês que nos visitou trouxe também uma solução de fito regenerativo: plantas que absorvem o chumbo ou que o estabilizam embaixo da terra. Pesquisadores da Universidade de São Paulo avaliam a possibilidade de reconstruir as calçadas para retirar o chumbo.
Há muitas saídas que, combinadas, podem resolver o problema do chumbo que lá está. Restam às pessoas fazer exames constantes, monitoramento, uma vez que as pesquisas do professor Carvalho apenas deram o pontapé inicial. São os perigos que corre essa gente morena, conforme o verso profético de Caetano.
Em dezembro do ano passado, entrevistei dois ex-funcionários da empresa que foram contaminados e que agora tinham sintomas muito parecidos com a doença de Alzheimer. Pensei que estava chegando a uma conclusão leviana, mas depois soube que há pesquisadores americanos que trabalham com a relação entre a contaminação e os sintomas parecidos com Alzheimer (perda da memória, incapacidade).
Uma pesquisa desse tipo seria cara, quase um luxo. Mas o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) deveria levantar o histórico de todos os ex-empregados que ainda estão doentes e também o dos que morreram. Os franceses, a quem contatamos por carta, estão tirando o seu da reta, mas um deles diz que terão de pagar por todo esse processo de recuperação da cidade.
O rio Subaé, então, é uma dor. Agora estão começando as articulações para se criar um comitê da bacia. Trata-se de um rio estadual, mas creio que a Bahia sozinha talvez não tenha condições de recuperá-lo. Vai ser preciso um grande esforço, embora existam alguns grandes institutos no mundo especializados em acidentes na água.
Não se poderá ficar apenas no Subaé. A baía de Todos os Santos está bem perto e foi atingida também. Dela, muitos pescadores tiram moluscos comestíveis como o sururu e o papa-fumo.
Já quase não há mais nada a discutir sobre o drama da cidade, conhecida como Santo Amaro da Purificação. Há muito a fazer. Depois de um ano inteiro de articulações, as principais propostas estão na mesa. Será preciso buscar dinheiro e trabalhar para que o chumbo seja retirado, as pessoas medicadas e monitoradas, o Subaé purificado. Os malditos já foram embora, o problema agora é achá-los para pagar, pelo menos, uma parte da conta.


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