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FERNANDO GABEIRA
Santo Amaro da Purificação e a profecia de Caetano
"Purificar o Subaé/
Mandar os malditos embora." A música de Caetano Veloso que fala de um progresso vazio,
matando mariscos e peixes do rio,
foi a poética intuição de um dos
mais graves problemas ambientais do Brasil. Talvez nem ele, no
momento em que compôs "Purificar o Subaé", tinha a consciência
exata do legado que uma fábrica
de chumbo francesa deixou em
sua cidade natal, Santo Amaro
(BA). São 500 mil toneladas de
apara de chumbo que contaminaram as pessoas, as ruas, o rio
Subaé e o estuário da baía de Todos os Santos.
Subsidiária da Penarroya, a fábrica quebrou em 1993. Mas a
montanha de chumbo ficou. Parte correu o Subaé, parte foi usada
em calçamento e até em pátios de
escolas. Os resultados começaram
a aparecer com pesquisas das universidades da Bahia e de São
Paulo. Uma delas, dirigida pelo
professor Fernando de Carvalho,
constatou um alto nível de contaminação nos moradores locais.
A outra, a dos paulistas, concentrou-se no lugar das fábricas.
Alguns grupos trabalham também nas escolas, em busca do vestígio do chumbo no pátio e no
sangue das crianças.
O processo foi possível porque
nem todos conheciam o perigo do
metal. Pensavam que era possível
reforçar o calçamento com ele e
usaram as aparas em outras funções, potencializando os riscos.
Faz um ano que se tenta uma
saída para abordar o drama, sem
estardalhaço. O primeiro grande
problema é o que fazer com o
chumbo que ainda está lá. Por ordem da Justiça foi enterrado e hoje aflora à superfície zombando
da ingenuidade da medida.
Há projetos para revendê-lo a
algumas indústrias que podem
aproveitá-lo. Um ecologista francês que nos visitou trouxe também uma solução de fito regenerativo: plantas que absorvem o
chumbo ou que o estabilizam embaixo da terra. Pesquisadores da
Universidade de São Paulo avaliam a possibilidade de reconstruir as calçadas para retirar o
chumbo.
Há muitas saídas que, combinadas, podem resolver o problema do chumbo que lá está. Restam às pessoas fazer exames constantes, monitoramento, uma vez
que as pesquisas do professor Carvalho apenas deram o pontapé
inicial. São os perigos que corre
essa gente morena, conforme o
verso profético de Caetano.
Em dezembro do ano passado,
entrevistei dois ex-funcionários
da empresa que foram contaminados e que agora tinham sintomas muito parecidos com a doença de Alzheimer. Pensei que estava chegando a uma conclusão leviana, mas depois soube que há
pesquisadores americanos que
trabalham com a relação entre a
contaminação e os sintomas parecidos com Alzheimer (perda da
memória, incapacidade).
Uma pesquisa desse tipo seria
cara, quase um luxo. Mas o INSS
(Instituto Nacional do Seguro Social) deveria levantar o histórico
de todos os ex-empregados que
ainda estão doentes e também o
dos que morreram. Os franceses, a
quem contatamos por carta, estão
tirando o seu da reta, mas um deles diz que terão de pagar por todo esse processo de recuperação
da cidade.
O rio Subaé, então, é uma dor.
Agora estão começando as articulações para se criar um comitê da
bacia. Trata-se de um rio estadual, mas creio que a Bahia sozinha talvez não tenha condições
de recuperá-lo. Vai ser preciso um
grande esforço, embora existam
alguns grandes institutos no
mundo especializados em acidentes na água.
Não se poderá ficar apenas no
Subaé. A baía de Todos os Santos
está bem perto e foi atingida também. Dela, muitos pescadores tiram moluscos comestíveis como o
sururu e o papa-fumo.
Já quase não há mais nada a
discutir sobre o drama da cidade,
conhecida como Santo Amaro da
Purificação. Há muito a fazer.
Depois de um ano inteiro de articulações, as principais propostas
estão na mesa. Será preciso buscar dinheiro e trabalhar para que
o chumbo seja retirado, as pessoas
medicadas e monitoradas, o Subaé purificado. Os malditos já foram embora, o problema agora é
achá-los para pagar, pelo menos,
uma parte da conta.
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