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SP-454
Penhenses e passado pontuam ida à Penha
Bairro mais antigo de São Paulo é repleto de peculiaridades e deve aos seus moradores parte de sua graça
DA REPORTAGEM LOCAL
Diante da igreja, Francisco
Folco aponta para um prédio.
"Ali era o casarão do coronel
Rodovalho. A mulher dele descobriu que ele encontrava a
amante ali. Mulher brava, queria que demolissem o palacete
em que ele a traiu." O casarão
deu lugar a um predinho feioso.
Uma escola quadradona é
descrita assim: "Aquele casarão, com um zoológico no quintal, era de uma família muito rica". Folco segue apontando:
um estacionamento, outro prédio, um escritório. E conta histórias de casarões invisíveis e
palacetes que já não são mais.
Um pouco de esforço e guia e
ouvinte são cercados por fachadas imponentes, ruas de paralelepípedos, mulheres de sombrinhas e homens de chapéu.
Dá até para ouvir o bonde passar. Mas aí vem um ônibus e estraga tudo. Voltamos a 2008.
Essas idas e vindas fazem de
um passeio pela Penha na companhia de Folco um programa
dos bons. Fundador do Memorial Penha de França, ele coleciona registros da história do
bairro -fotográficos, verbais,
oficiais. Tudo começou quando
Folco decidiu documentar as
pinturas da igreja, feitas nos
anos 30 por seu avô, Alfredo
Cespi. E ele reúne todos os seus
recortes de histórias ao contar
as peculiaridades penhenses,
que não são poucas.
Santa francesa
Hoje pode soar estranha a
idéia de fazer turismo nesse
bairro paulistano, mas a Penha
já foi grande destino religioso.
A peregrinação era fruto da
popularidade da Nossa Senhora da Penha de França -em
tempo, ela se chama assim porque a imagem veio da França.
A santa está ligada à fundação do bairro -o mais antigo de
São Paulo, ao lado de Santo
Amaro. Diz a lenda que um religioso francês, nos idos de 1600,
dormiu na colina onde hoje fica
a Penha. Ele carregava a imagem da santa. No dia seguinte,
foi embora e, depois de um tanto, sentiu falta da imagem. Voltou ao ponto onde havia dormido, e lá estava ela. Ele pegou a
santa e seguiu viagem. E logo
sentiu falta da imagem. Voltou,
e lá estava ela, no mesmo lugar.
E ele ergueu uma capela ali
mesmo. Foi onde a santa ficou
até o meio do século passado,
quando foi inaugurada a basílica em que ela está agora.
Vaquinha
Só essa igreja erguida pelo
francês já é motivo para fazer o
paulistano não-penhense rumar até lá. Logo acima da porta,
um escudo indica que a igreja
seria de 1682. Mas há registros
que apontam que ela já existia
em 1667. Não há mais muito do
templo erguido quatro séculos
atrás. Mas a igreja é uma sobrevivente, e sua sobrevida ilustra
o perfil de uma das principais
atrações do bairro: o penhense.
Em 1982, ela quase caiu. Prefeitura e padres não viam porque salvar o templo. "A igreja
foi muito descaracterizada, tornando-se uma obra sem interesse cultural", disse, à época, o
secretário da Cultura, João
Carlos Martins. O padre Calazans, até hoje à frente da paróquia, fez coro: "A igreja já passou por inúmeras reformas nos
seus 300 anos e hoje, toda quebrada, com grandes rachaduras, oferece perigo à população". Mas a população não estava nem aí com a arquitetura.
Organizados em torno de
uma comissão, os moradores,
"arrecadando recursos em urnas colocadas em lojas, bares e
na nova igreja do bairro, ou
através de uma conta bancária
para essa finalidade", fizeram a
reforma, segundo conta reportagem da extinta "Folha da Tarde" de maio de 1983. Se não é
um marco arquitetônico, a
igreja é uma boa ilustração do
comportamento dos moradores quando o assunto é a Penha.
Vire nas Casas Bahia
O penhense é um barato.
Muitos moram ali há muito
tempo e fazem questão de contar história atrás de história.
Você toma um cafezinho? E lá
vêm as lembranças de quando a
ida à missa rendia ingresso para
o cinema e de quando a igreja
organizava peladas na quadra
da paróquia. Em um salto, a infância leva à independência do
Brasil. Um dia depois de bradar
"independência ou morte",
Dom Pedro 1º dormiu na Penha, às margens do Ipiranga.
Mas não é só na memória que
o penhense é um barato. Peça
uma indicação de caminho no
centrinho do bairro e fatalmente alguém vai indicar uma guinada à direita na Casas Bahia.
Lá vai você, esperando uma
Casas Bahia na esquina. Ela está no meio da quadra. E a escada rolante, lotada, mostra que o
corredor da loja foi incorporado ao passeio público. O mesmo acontece em outras lojas
que têm saídas para ruas distintas, assim como o shopping.
E vá ao Rosário
É preciso tomar cuidado para
não se esquecer dos pontos a visitar diante de tantas curiosidades. Então vamos adiante para
a igreja do Rosário. Erguida em
1802 em taipa pelos negros, que
não podiam entrar na igreja dos
brancos, a capela de Nossa Senhora da Penha e de São Benedito -esse é seu nome oficial-
tem aquelas paredes grossas e
traços simples que marcam esse tipo de construção.
Folco conta que quando foi
construída, a igreja tinha a importante função de abrigar negros alforriados, sem ter para
onde ir. Ainda hoje, ela mantém a vocação e abriga sem-tetos no mezanino.
A última parada é logo diante
da antiga curva do bonde, onde
fica a escola Santos Dumont.
De 1913, projetado por Hércules Beccari, o prédio não pode
ser visitado, por funcionar como escola. Mas vale uns minutinhos de atenção.
O burburinho dos ônibus que
param em fila na avenida Penha de França, a confusão de
ambulantes que tornam a calçada intransitável e os megafones das lojas anunciando promoções lembram que estamos
em São Paulo e em 2008, mas,
de quando em quando, o passeio pela Penha parece mesmo
uma viagem. Para um arrabalde de outrora.
(HELOISA LUPINACCI)
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