São Paulo, quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

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SP-454

Penhenses e passado pontuam ida à Penha

Bairro mais antigo de São Paulo é repleto de peculiaridades e deve aos seus moradores parte de sua graça

DA REPORTAGEM LOCAL

Diante da igreja, Francisco Folco aponta para um prédio. "Ali era o casarão do coronel Rodovalho. A mulher dele descobriu que ele encontrava a amante ali. Mulher brava, queria que demolissem o palacete em que ele a traiu." O casarão deu lugar a um predinho feioso.
Uma escola quadradona é descrita assim: "Aquele casarão, com um zoológico no quintal, era de uma família muito rica". Folco segue apontando: um estacionamento, outro prédio, um escritório. E conta histórias de casarões invisíveis e palacetes que já não são mais.
Um pouco de esforço e guia e ouvinte são cercados por fachadas imponentes, ruas de paralelepípedos, mulheres de sombrinhas e homens de chapéu. Dá até para ouvir o bonde passar. Mas aí vem um ônibus e estraga tudo. Voltamos a 2008.
Essas idas e vindas fazem de um passeio pela Penha na companhia de Folco um programa dos bons. Fundador do Memorial Penha de França, ele coleciona registros da história do bairro -fotográficos, verbais, oficiais. Tudo começou quando Folco decidiu documentar as pinturas da igreja, feitas nos anos 30 por seu avô, Alfredo Cespi. E ele reúne todos os seus recortes de histórias ao contar as peculiaridades penhenses, que não são poucas.

Santa francesa
Hoje pode soar estranha a idéia de fazer turismo nesse bairro paulistano, mas a Penha já foi grande destino religioso.
A peregrinação era fruto da popularidade da Nossa Senhora da Penha de França -em tempo, ela se chama assim porque a imagem veio da França.
A santa está ligada à fundação do bairro -o mais antigo de São Paulo, ao lado de Santo Amaro. Diz a lenda que um religioso francês, nos idos de 1600, dormiu na colina onde hoje fica a Penha. Ele carregava a imagem da santa. No dia seguinte, foi embora e, depois de um tanto, sentiu falta da imagem. Voltou ao ponto onde havia dormido, e lá estava ela. Ele pegou a santa e seguiu viagem. E logo sentiu falta da imagem. Voltou, e lá estava ela, no mesmo lugar. E ele ergueu uma capela ali mesmo. Foi onde a santa ficou até o meio do século passado, quando foi inaugurada a basílica em que ela está agora.

Vaquinha
Só essa igreja erguida pelo francês já é motivo para fazer o paulistano não-penhense rumar até lá. Logo acima da porta, um escudo indica que a igreja seria de 1682. Mas há registros que apontam que ela já existia em 1667. Não há mais muito do templo erguido quatro séculos atrás. Mas a igreja é uma sobrevivente, e sua sobrevida ilustra o perfil de uma das principais atrações do bairro: o penhense.
Em 1982, ela quase caiu. Prefeitura e padres não viam porque salvar o templo. "A igreja foi muito descaracterizada, tornando-se uma obra sem interesse cultural", disse, à época, o secretário da Cultura, João Carlos Martins. O padre Calazans, até hoje à frente da paróquia, fez coro: "A igreja já passou por inúmeras reformas nos seus 300 anos e hoje, toda quebrada, com grandes rachaduras, oferece perigo à população". Mas a população não estava nem aí com a arquitetura.
Organizados em torno de uma comissão, os moradores, "arrecadando recursos em urnas colocadas em lojas, bares e na nova igreja do bairro, ou através de uma conta bancária para essa finalidade", fizeram a reforma, segundo conta reportagem da extinta "Folha da Tarde" de maio de 1983. Se não é um marco arquitetônico, a igreja é uma boa ilustração do comportamento dos moradores quando o assunto é a Penha.

Vire nas Casas Bahia
O penhense é um barato. Muitos moram ali há muito tempo e fazem questão de contar história atrás de história. Você toma um cafezinho? E lá vêm as lembranças de quando a ida à missa rendia ingresso para o cinema e de quando a igreja organizava peladas na quadra da paróquia. Em um salto, a infância leva à independência do Brasil. Um dia depois de bradar "independência ou morte", Dom Pedro 1º dormiu na Penha, às margens do Ipiranga.
Mas não é só na memória que o penhense é um barato. Peça uma indicação de caminho no centrinho do bairro e fatalmente alguém vai indicar uma guinada à direita na Casas Bahia.
Lá vai você, esperando uma Casas Bahia na esquina. Ela está no meio da quadra. E a escada rolante, lotada, mostra que o corredor da loja foi incorporado ao passeio público. O mesmo acontece em outras lojas que têm saídas para ruas distintas, assim como o shopping.

E vá ao Rosário
É preciso tomar cuidado para não se esquecer dos pontos a visitar diante de tantas curiosidades. Então vamos adiante para a igreja do Rosário. Erguida em 1802 em taipa pelos negros, que não podiam entrar na igreja dos brancos, a capela de Nossa Senhora da Penha e de São Benedito -esse é seu nome oficial- tem aquelas paredes grossas e traços simples que marcam esse tipo de construção.
Folco conta que quando foi construída, a igreja tinha a importante função de abrigar negros alforriados, sem ter para onde ir. Ainda hoje, ela mantém a vocação e abriga sem-tetos no mezanino.
A última parada é logo diante da antiga curva do bonde, onde fica a escola Santos Dumont. De 1913, projetado por Hércules Beccari, o prédio não pode ser visitado, por funcionar como escola. Mas vale uns minutinhos de atenção.
O burburinho dos ônibus que param em fila na avenida Penha de França, a confusão de ambulantes que tornam a calçada intransitável e os megafones das lojas anunciando promoções lembram que estamos em São Paulo e em 2008, mas, de quando em quando, o passeio pela Penha parece mesmo uma viagem. Para um arrabalde de outrora. (HELOISA LUPINACCI)


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