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São Paulo, segunda-feira, 24 de fevereiro de 2003

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FERNANDO GABEIRA

As mudanças que uma guerra nos traz

O mundo tem um novo movimento político global: a luta contra a guerra. É diferente da campanha contra a Guerra do Vietnã, que uniu a esquerda e os hippies. Basta ler a cobertura das demonstrações do dia 15 de fevereiro, as mais poderosas deste início de século, que, ao contrário das outras, uniram do homem apartidário à extrema direita.
Essas entradas maciças de novos componentes significa basicamente que milhões de destinos pessoais, de certa forma, se revolucionaram e assumiram uma nova responsabilidade no destino comum. Levaremos algum tempo para levantar essa virada.
No momento estou lendo o livro de Herbert Marder sobre os últimos dias de vida da escritora Virginia Woolf ("The Measure of Life: Virginia Woolf's Last Years"). Segundo ele, o que o atraiu para o tema foi o estudo da reação das pessoas sob forte pressão histórica e como as pessoas se transformam com a nova consciência.
No caso de Virginia Woolf, a mudança, diante da crise nos anos 30 e das ameaças de guerra que pairavam no ar, foi uma abertura maior para a questão social, a disposição de lutar pela paz e por uma cultura de tolerância. Ela já tinha escrito "Miss Dalloway" e "To The Lighthouse", com sucesso de crítica.
A transformação de uma grande escritora não escapa aos biógrafos. E os historiadores podem constatar, se quiserem, como ela passou a enfatizar, junto com a tolerância, o uso da razão, a alegria de viver.
Mas no homem comum, esse que decidiu, na Inglaterra, na Espanha e na Itália, por exemplo, condenar uma guerra apoiada pelos seus governos, essa transformação teria de ser estudada.
Era preciso fazer em escala global o trabalho que o escritor James Agee e o fotógrafo Walker Evans fizeram nos EUA, no fim da década de 30, percorrendo o país, entrevistando pessoas, conhecendo seu cotidiano. É um canto de louvor aos homens do interior do país, resistindo anonimamente ao impacto da crise.
É difícil esperar que a mídia louve esses grandes homens e mulheres do 15 de fevereiro. A mídia trabalha com algumas personalidades e a massa anônima muitas vezes tem como única porta a página de polícia.
O 15 de fevereiro é um dia em que a humanidade mostrou ter atingido um patamar em que as soluções políticas se sobrepõem às ações armadas, as multilaterais, às decisões de países isolados.
Essa constatação não afasta o perigo real de guerra. É apenas um contraponto histórico a um núcleo de direita que dirige os EUA e articula uma coalizão de governos já sabendo que tem contra ela uma coalizão de povos.
Virginia Woof foi uma mulher corajosa. E estou com seu biógrafo quando ele diz que isso continua válido para uma suicida que escolheu o lugar e a hora de morrer. Os valores que ela destacou quando se abriu para o mundo ainda movem as pessoas: pacifismo, tolerância, alegria de viver.
Sei como valores abstratos podem irritar os que analisam a política. No entanto o simples enunciado deles mostra como é absurdo estabelecer um vínculo entre o movimento pela paz e a simpatia por Saddam Hussein. Criticar o pacifismo por esse lado é ignorar que essa posição é também defendida por países, com seus quadros especializados em política externa; por civilizações como a chinesa, pois foi em nome de uma outra civilização que a China se pronunciou na ONU; por líderes de dimensão internacional, como Nelson Mandela e Lula.
É uma posição que se expõe em todos os níveis, das manifestações de rua aos corredores diplomáticos, dos editoriais aos poemas. Nem os mais entendidos imaginavam que existissem tantos poetas nos EUA. Bastou um pedido na internet que choveram poemas pela paz. Nunca os artistas norte-americanos participaram tanto de um movimento político.
O Brasil tem sido impecável em tudo isso. Mas não custa sonhar. O Lula mora no Palácio da Alvorada, o Gilberto Gil, na Academia de Tênis. Quem sabe eles não sentam para bater um papo sobre a cultura da paz e da tolerância. Quem sabe eles não a adotam como singularidade de uma política cultural brasileira, tão centrada em discutir que setores apoiar, que monumentos preservar.
No meu sonho, essa constatação não resulta em produzir poemas ou espetáculos pela paz. A resposta está na cultura brasileira, na mestiçagem, valorizada inclusive no programa do PT.
Se resolvermos que esse é nosso caminho, encontraremos nossa maneira de inserção no mundo globalizado. No meu entender, a mais adequada possível. Significa que já temos inscrita em nossa história uma chave para o futuro.
A essa altura, quase meia-noite em Brasília, onde escrevo, vão me perguntar o que resulta de prático deste devaneio. No momento me ocorre isto: um encontro internacional de artistas e políticos, a cultura da paz e da tolerância.
De onde sairia a grana numa crise dessas? Seria preciso conversar com os exportadores, com TVs nacionais e internacionais, com editores, patrocinadores para uma página na internet.
Finalmente, com o dinheiro, não seria melhor usá-lo na luta contra a fome? Creio que é possível a coexistência da luta contra a fome e do fortalecimento da cultura brasileira de paz e tolerância. Na verdade, elas se fortalecem mutuamente.
Sonhar pelo menos nos faz mais próximos daquela frase atribuída a Eleonor Roosevelt: "É melhor acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão".

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