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FERNANDO GABEIRA
As mudanças que uma guerra nos traz
O mundo tem um novo movimento político global: a
luta contra a guerra. É diferente
da campanha contra a Guerra do
Vietnã, que uniu a esquerda e os
hippies. Basta ler a cobertura das
demonstrações do dia 15 de fevereiro, as mais poderosas deste início de século, que, ao contrário
das outras, uniram do homem
apartidário à extrema direita.
Essas entradas maciças de novos componentes significa basicamente que milhões de destinos
pessoais, de certa forma, se revolucionaram e assumiram uma
nova responsabilidade no destino
comum. Levaremos algum tempo
para levantar essa virada.
No momento estou lendo o livro
de Herbert Marder sobre os últimos dias de vida da escritora Virginia Woolf ("The Measure of Life: Virginia Woolf's Last Years").
Segundo ele, o que o atraiu para o
tema foi o estudo da reação das
pessoas sob forte pressão histórica
e como as pessoas se transformam
com a nova consciência.
No caso de Virginia Woolf, a
mudança, diante da crise nos
anos 30 e das ameaças de guerra
que pairavam no ar, foi uma
abertura maior para a questão
social, a disposição de lutar pela
paz e por uma cultura de tolerância. Ela já tinha escrito "Miss Dalloway" e "To The Lighthouse",
com sucesso de crítica.
A transformação de uma grande escritora não escapa aos biógrafos. E os historiadores podem
constatar, se quiserem, como ela
passou a enfatizar, junto com a
tolerância, o uso da razão, a alegria de viver.
Mas no homem comum, esse
que decidiu, na Inglaterra, na Espanha e na Itália, por exemplo,
condenar uma guerra apoiada
pelos seus governos, essa transformação teria de ser estudada.
Era preciso fazer em escala global o trabalho que o escritor James Agee e o fotógrafo Walker
Evans fizeram nos EUA, no fim
da década de 30, percorrendo o
país, entrevistando pessoas, conhecendo seu cotidiano. É um
canto de louvor aos homens do
interior do país, resistindo anonimamente ao impacto da crise.
É difícil esperar que a mídia
louve esses grandes homens e mulheres do 15 de fevereiro. A mídia
trabalha com algumas personalidades e a massa anônima muitas
vezes tem como única porta a página de polícia.
O 15 de fevereiro é um dia em
que a humanidade mostrou ter
atingido um patamar em que as
soluções políticas se sobrepõem às
ações armadas, as multilaterais,
às decisões de países isolados.
Essa constatação não afasta o
perigo real de guerra. É apenas
um contraponto histórico a um
núcleo de direita que dirige os
EUA e articula uma coalizão de
governos já sabendo que tem contra ela uma coalizão de povos.
Virginia Woof foi uma mulher
corajosa. E estou com seu biógrafo quando ele diz que isso continua válido para uma suicida que
escolheu o lugar e a hora de morrer. Os valores que ela destacou
quando se abriu para o mundo
ainda movem as pessoas: pacifismo, tolerância, alegria de viver.
Sei como valores abstratos podem irritar os que analisam a política. No entanto o simples enunciado deles mostra como é absurdo estabelecer um vínculo entre o
movimento pela paz e a simpatia
por Saddam Hussein. Criticar o
pacifismo por esse lado é ignorar
que essa posição é também defendida por países, com seus quadros
especializados em política externa; por civilizações como a chinesa, pois foi em nome de uma outra civilização que a China se pronunciou na ONU; por líderes de
dimensão internacional, como
Nelson Mandela e Lula.
É uma posição que se expõe em
todos os níveis, das manifestações
de rua aos corredores diplomáticos, dos editoriais aos poemas.
Nem os mais entendidos imaginavam que existissem tantos poetas nos EUA. Bastou um pedido
na internet que choveram poemas pela paz. Nunca os artistas
norte-americanos participaram
tanto de um movimento político.
O Brasil tem sido impecável em
tudo isso. Mas não custa sonhar.
O Lula mora no Palácio da Alvorada, o Gilberto Gil, na Academia
de Tênis. Quem sabe eles não sentam para bater um papo sobre a
cultura da paz e da tolerância.
Quem sabe eles não a adotam como singularidade de uma política
cultural brasileira, tão centrada
em discutir que setores apoiar,
que monumentos preservar.
No meu sonho, essa constatação
não resulta em produzir poemas
ou espetáculos pela paz. A resposta está na cultura brasileira, na
mestiçagem, valorizada inclusive
no programa do PT.
Se resolvermos que esse é nosso
caminho, encontraremos nossa
maneira de inserção no mundo
globalizado. No meu entender, a
mais adequada possível. Significa
que já temos inscrita em nossa
história uma chave para o futuro.
A essa altura, quase meia-noite
em Brasília, onde escrevo, vão me
perguntar o que resulta de prático
deste devaneio. No momento me
ocorre isto: um encontro internacional de artistas e políticos, a cultura da paz e da tolerância.
De onde sairia a grana numa
crise dessas? Seria preciso conversar com os exportadores, com TVs
nacionais e internacionais, com
editores, patrocinadores para
uma página na internet.
Finalmente, com o dinheiro,
não seria melhor usá-lo na luta
contra a fome? Creio que é possível a coexistência da luta contra a
fome e do fortalecimento da cultura brasileira de paz e tolerância. Na verdade, elas se fortalecem mutuamente.
Sonhar pelo menos nos faz mais
próximos daquela frase atribuída
a Eleonor Roosevelt: "É melhor
acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão".
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