São Paulo, quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

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FIM DE INVERNO EM NY
Passear pelo hotel Algonquin, ouvir Bobby Short e visitar Paulo Francis eram motivos para desafiar frio

ANÁLISE

Amigos justificavam visita a 10º negativos

Pedro Carrilho/Folha Imagem
LUZ, CÂMERA, AÇÃO
Tradicional rinque de patinação, o Wollman Rink é cenário de vários longas-metragens; o local fica perto do zoológico Central Park Wildlife Center, que reúne pandas-vermelhos e leões-marinhos
RUY CASTRO
COLUNISTA DA FOLHA

Naturalmente, em 1974, todos os personagens mencionados na pág. F1 estavam todos mortos, e a "mesa redonda", aposentada e trancada no almoxarife. Mas a aura do Algonquin como um lugar de gente criativa e excêntrica continuava, assim como os corredores com as paredes empapeladas de vermelho e branco em listras verticais, como a camisa do Bangu, e, em molduras simplérrimas, os originais dos cartunistas da revista "The New Yorker" que o frequentavam nos velhos tempos: James Thurber, Charles Addams (criador da "Família Addams"), Peter Arno, Saul Steinberg - quanto não deve valer hoje um desses desenhos?
Passear pelos salões do Algonquin e fazer hora no lobby, perto da charutaria, era um dos pretextos para não ter de sair à rua e enfrentar os dez graus abaixo de zero -temperatura média naqueles 40 dias, com sensação térmica de 20 abaixo, provocada pelo bestial vento típico da ilha. E a primeira neve a cair, como disse, era deliciosa, pitoresca -até que, de tanto os carros passarem por cima, ela se transformasse num misto de lama e óleo que a prefeitura, então falida, não tinha como remover, e que provocava enorme irritação nas pessoas.
Não que a cidade não oferecesse atrações que justificassem desafiar o frio. Para mim, uma delas era visitar meu amigo, o jornalista Paulo Francis, em seu apartamento na Bleecker street, no Village, fazer com ele périplos pelas livrarias e lojas de discos e almoçar ou jantar hambúrgueres, prato favorito de Francis em seus primeiros tempos de Nova York.
Outra grande pedida, esta exigindo gravata, era o Café Carlyle, na rua 76 com Madison avenue, onde o cantor e pianista Bobby Short estava deixando de ser um segredo de Manhattan e começando a ser descoberto pelas platéias internacionais -embora, então, não mais que meia dúzia de brasileiros soubessem de quem se tratava.
Era o tempo em que Bobby ainda dava três shows por noite -o primeiro, instrumental, quase jazzístico, em que ele parecia tocar mais para si do que para a platéia. Nos dois sets seguintes, soltava o verbo e desfiava seu repertório de canções ultrassofisticadas e que só ele parecia conhecer, de Cole Porter, Rodgers & Hart, Vernon Duke, Stephen Sondheim.
O Carlyle o ouvia com reverência religiosa -ninguém dava um pio. E, como todo "saloon singer", ele se divertia ligando alguns clientes a certas canções. A que cantava quando me via, desde que nos conhecemos, alguns anos antes, era "Flying Down to Rio", de Vincent Youmans e Edward Eliscu.
Outro pretexto irresistível para sair e enfrentar o gelo foi ir ao Shubert Theatre, também na rua 44, para assistir a "A Little Night Music", o musical de Sondheim, em sua primeiríssima encarnação na Broadway, com Glynis Johns, Len Cariou e Hermione Gingold. Até então, Sondheim era contestado pelos críticos de Nova York, que não entendiam o que ele fazia. Ninguém diria que, um dia, eles iriam propor sua canonização.
Quanto a mim, fã de Sondheim desde sempre, devo confessar que "Send in the Clowns", a grande canção da peça e o maior sucesso do homem, não me disse nada quando a ouvi naquela noite. Pois é. Na verdade, só iria descobri-la tempos depois, com Sinatra.
E até hoje me pergunto por que, dali a alguns dias, não dirigi a palavra ao casal Garson Kanin e Ruth Gordon quando me vi sentado ao lado deles, na última sessão de um revival de "The Pajama Game", no Lunt-Fontanne Theatre.
E olhe que eu sabia tudo sobre eles. Kanin era o autor de "Nascida Ontem", a peça que revelara Judy Holliday em 1949 e, dois anos depois, daria a Judy o Oscar pela versão no cinema, derrotando Bette Davis em "A Malvada"; e Ruth, já com 78 anos, dividindo comigo um braço de poltrona, só há pouco ficara conhecida do grande público, ao fazer a bruxa de "O Bebê de Rosemary" (1968) e a velhinha por quem o adolescente se apaixona em "Ensina-me a Viver" (1971).
Não sei se foi por causa de Cab Calloway e da linda Barbara McNair no elenco de "Pajama Game", ou se fiquei apalermado pela presença do casal, o fato é que Garson e Ruth se levantaram ao fim da peça e foram embora, sem que eu lhes dissesse, minimamente, "Prazer em conhecê-los".
Ah, sim, Nova York no inverno. Estive lá muitas outras vezes nessa época. Numa delas, em 1989, sem tanto frio, dei um giro pelo Central Park com Tom Jobim -ele tentando identificar os passarinhos por seus nomes em inglês. E, em todas as visitas, em qualquer estação, até meados dos anos 90, nunca deixei de ver Paulo Francis e Bobby Short.
Mas, desde então, percebi que estava me interessando mais por catedrais do que por arranha-céus. Troquei Nova York pela Europa e me entreguei, encantado, a Madri, Roma e Berlim, ao sul da França, ao norte de Portugal e a outros burgos. Nesse ínterim, em Nova York, Francis morreu (em 1997), houve o 11 de setembro (em 2001) e, depois, Bobby também morreu (em 2005). Nada disso me reaproximou da cidade e, pode crer, faz quase 15 anos que não vou lá.
Mas, quem sabe, de repente, não está na hora de voltar...


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