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FERNANDO GABEIRA
A emoção de redescobrir um Rio com peixes e golfinhos
Para mim , aconteceu um
milagre no Rio. A santa responsável foi uma seca de dez dias
que limpou as águas do mar,
trouxe de volta os peixes e, atrás
deles, os golfinhos. Mar manso,
cristalino, lembranças de um
tempo em que a vida era uma alegre possibilidade. Tudo isso apareceu nos jornais, os golfinhos no
lugar da chuva fechando o verão,
num calor de arrebentar os que
estavam longe da brisa sem poder
mergulhar numa água tão discreta que nem sei se era mais para
fria ou para quente, bastava
abraçá-la, sem adjetivos.
Acordava às seis da manhã e ia
buscar um amigo que já me esperava impaciente, pensando nas
voltas que daria na pedra do Arpoador para chegar à praia do
Diabo. Reconciliado com o lugar
-que para mim oferecia a primeira grande vista do Brasil-,
agora podia mergulhar nele, flutuar, de braços abertos, olhando
para o Sol, lembrando de versos
que recitava para mim mesmo na
década de 60, de um poeta português que morreu em terras brasileiras: "Descansa mais perto/ ao
menos aqui/ e desfranze a ruga da
tua boca/ laivo de tinta escarlate/
na cor mate do teu rosto". Talvez
os versos não fossem bem assim.
Mas o que importa? Estava reaprendendo tanta coisa com o prazer de viver à beira-mar...
Como me arranjar na praia, se
no bagageiro da pequena scooter
deixava de fora algumas coisas
necessárias. Minha filha me ensinou que, na barraca do Oséas, era
possível guardar chinelos e chaves. Deu certo. Talvez fosse a primeira pessoa naquele dia a pedir
para guardar algo. Não sei se sorriria para mim se o abordasse às
cinco e meia da tarde.
Enquanto flutuava, meu amigo
nadou até a praia do Diabo, contornando a pedra, e já estava de
novo ao meu lado, propondo:
"Agora vamos nadar até aquele
edifício na Rainha Elizabeth".
Havia gente nadando e muito espaço. Mesmo assim, de vez em
quando alguém passava muito
perto e lembrávamos do aperto
da piscina: "Tudo bem, meu amigo, mas na próxima procure levantar um pouco mais o queixo".
É como se tivessem roubado
uma cidade, e a seca de dez dias,
devolvido. As capas dos jornais
foram inundadas com águas verdes, golfinhos saltando, mas não
se conta em reportagem o que se
passou no coração das pessoas. As
lembranças se desdobrando e tecendo um fio de unidade entre o
antes e o agora, como se o mergulho nas águas do Rio nos tornasse
um outro, isto é, o mesmo que se
perdeu com a separação.
Meu amigo encontrou uma conhecida e se espantou com o tamanho de sua filha. Fui ver um
bebê no carrinho, um menino que
vi nascer: estava grande, nu e rosado, com uma carga de iodo e sal
que não se ganha nos parques e
nas pracinhas.
Esse impacto, no fundo, é evento social. As consciências estão saturadas de denúncias, era preciso
um fato novo, uma pequena volta
no tempo que a própria natureza,
com a massa que deteve as chuvas, nos presenteou. Olhem como
seriam as praias do Rio se cuidássemos delas e salvássemos a baía.
Se tivéssemos uma prefeitura poética, talvez esta pudesse criar uma
Secretaria da Beleza Natural. Sua
missão nesse curto milagre do Rio
teria sido filmar, gravar depoimentos, distribuir vídeos dos golfinhos nas escolas. Se todos pudessem ver, creio que todos iriam
querer.
Voltando ou não a chover, o milagre deste fim de verão vai se
prolongar na memória. Sentava
na pedra do Arpoador e pensava
que tudo estava perdido. Agora,
posso me sentar de novo e pensar:
"Calma, se os peixes e golfinhos
chegaram depois de tanto tempo,
é porque podem um dia voltar".
Esta foi uma semana de agradecimentos. No Congresso, Sarney
olhou para o busto de Rui Barbosa e disse: "Não esqueço um dia o
Maranhão, como ele não esquecia nunca a Bahia". Experimentei
soltar o ombro, como se estivesse
flutuando, e veio a imagem do
Rio visto da pedra do Arpoador.
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