São Paulo, segunda-feira, 25 de março de 2002

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FERNANDO GABEIRA

A emoção de redescobrir um Rio com peixes e golfinhos

Para mim , aconteceu um milagre no Rio. A santa responsável foi uma seca de dez dias que limpou as águas do mar, trouxe de volta os peixes e, atrás deles, os golfinhos. Mar manso, cristalino, lembranças de um tempo em que a vida era uma alegre possibilidade. Tudo isso apareceu nos jornais, os golfinhos no lugar da chuva fechando o verão, num calor de arrebentar os que estavam longe da brisa sem poder mergulhar numa água tão discreta que nem sei se era mais para fria ou para quente, bastava abraçá-la, sem adjetivos.
Acordava às seis da manhã e ia buscar um amigo que já me esperava impaciente, pensando nas voltas que daria na pedra do Arpoador para chegar à praia do Diabo. Reconciliado com o lugar -que para mim oferecia a primeira grande vista do Brasil-, agora podia mergulhar nele, flutuar, de braços abertos, olhando para o Sol, lembrando de versos que recitava para mim mesmo na década de 60, de um poeta português que morreu em terras brasileiras: "Descansa mais perto/ ao menos aqui/ e desfranze a ruga da tua boca/ laivo de tinta escarlate/ na cor mate do teu rosto". Talvez os versos não fossem bem assim. Mas o que importa? Estava reaprendendo tanta coisa com o prazer de viver à beira-mar...
Como me arranjar na praia, se no bagageiro da pequena scooter deixava de fora algumas coisas necessárias. Minha filha me ensinou que, na barraca do Oséas, era possível guardar chinelos e chaves. Deu certo. Talvez fosse a primeira pessoa naquele dia a pedir para guardar algo. Não sei se sorriria para mim se o abordasse às cinco e meia da tarde.
Enquanto flutuava, meu amigo nadou até a praia do Diabo, contornando a pedra, e já estava de novo ao meu lado, propondo: "Agora vamos nadar até aquele edifício na Rainha Elizabeth". Havia gente nadando e muito espaço. Mesmo assim, de vez em quando alguém passava muito perto e lembrávamos do aperto da piscina: "Tudo bem, meu amigo, mas na próxima procure levantar um pouco mais o queixo".
É como se tivessem roubado uma cidade, e a seca de dez dias, devolvido. As capas dos jornais foram inundadas com águas verdes, golfinhos saltando, mas não se conta em reportagem o que se passou no coração das pessoas. As lembranças se desdobrando e tecendo um fio de unidade entre o antes e o agora, como se o mergulho nas águas do Rio nos tornasse um outro, isto é, o mesmo que se perdeu com a separação.
Meu amigo encontrou uma conhecida e se espantou com o tamanho de sua filha. Fui ver um bebê no carrinho, um menino que vi nascer: estava grande, nu e rosado, com uma carga de iodo e sal que não se ganha nos parques e nas pracinhas.
Esse impacto, no fundo, é evento social. As consciências estão saturadas de denúncias, era preciso um fato novo, uma pequena volta no tempo que a própria natureza, com a massa que deteve as chuvas, nos presenteou. Olhem como seriam as praias do Rio se cuidássemos delas e salvássemos a baía. Se tivéssemos uma prefeitura poética, talvez esta pudesse criar uma Secretaria da Beleza Natural. Sua missão nesse curto milagre do Rio teria sido filmar, gravar depoimentos, distribuir vídeos dos golfinhos nas escolas. Se todos pudessem ver, creio que todos iriam querer.
Voltando ou não a chover, o milagre deste fim de verão vai se prolongar na memória. Sentava na pedra do Arpoador e pensava que tudo estava perdido. Agora, posso me sentar de novo e pensar: "Calma, se os peixes e golfinhos chegaram depois de tanto tempo, é porque podem um dia voltar".
Esta foi uma semana de agradecimentos. No Congresso, Sarney olhou para o busto de Rui Barbosa e disse: "Não esqueço um dia o Maranhão, como ele não esquecia nunca a Bahia". Experimentei soltar o ombro, como se estivesse flutuando, e veio a imagem do Rio visto da pedra do Arpoador.



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