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Com fama de louco, 'superstar' marfinense mostra que o estilo pode ir além de Bob Marley
Alpha Blondy radicaliza o reggae
SÉRGIO MARTINS
especial para a Folha
Talvez para os brasileiros as letras de Bob Marley nunca tenham "batido" tanto quanto deveriam. Afinal, cultuar uma filosofia de vida ancestral (o rastafarianismo), acreditar que um rei
africano seja a reencarnação de
Jesus Cristo (o tirano etíope Hailé Selassié) e abominar o mundo
civilizado, chamando-o de Babilônia, não caem muito bem para
nós, os reis da desencanação.
Os africanos, porém, tomam as
palavras de Marley como uma
escritura sagrada.
Explorada por colonizadores,
morando em guetos e vítima de
um apartheid político e social, a
população africana abraçou o
reggae como uma bênção -e o
gênero virou música subversiva
para os políticos locais.
O sul-africano Lucky Dube teve suas canções proibidas pelo
governo branco da África do Sul.
Thomas Mapfumo cantou a libertação da Rodésia (atual Zimbábue), com seu ritmo chiamurenga, e Majek Fashek domina a
população da Nigéria, com canções de protesto e uma capacidade (não provada cientificamente,
é claro) de produzir chuvas.
Mas nenhum desses astros supera o "superstar" da Costa do
Marfim, Alpha Blondy, em importância e criatividade.
Nascido em Dimbokoro sob o
nome de Seydou Kone, o cantor
passa longe do "reggae-carbono" executado por muitos admiradores de Bob Marley.
Adicionou guitarras e sopros
típicos da música africana aos
principais elementos do reggae
(leia-se baixo e bateria estalando
nos ouvidos e letras libertárias).
Para ser melhor entendido, canta
em inglês, francês e no dialeto
marfinense dioula.
No início, o rock
O interessante é que Blondy
iniciou sua carreira como uma
estrela do rock. Ele fazia parte de
uma banda de afro rock chamada Atomic Vibrations.
Só mudou de estilo depois de
uma viagem à Jamaica, onde conheceu os hinos de Bob Marley e
gravou alguns compactos -nenhum obteve sucesso. Em seguida, passou uma temporada em
clínicas psiquiátricas devido ao
abuso de LSD (que, dizem, ainda
faz parte de sua vida).
Alpha só conheceu a fama a
partir dos anos 80. Graças a álbuns clássicos como "Cocody
Rock" (1984) e "Apartheid is
Nazism" (1985), ele ganhou destaque na França, país que o trata
como o legítimo sucessor de Bob
Marley. O astro também é bastante respeitado no Brasil.
Ele se apresentou por aqui em
1994. Estava convocado para o
festival Ruffles Reggae do ano
passado, mas faltou (sim, aquele
velho problema psiquiátrico).
Louco ou não, Alpha Blondy
faz um "chacundum" da melhor
qualidade. Álbuns como "Jerusalém" (87), gravado ao lado dos
Wailers, estão entre os grandes
clássicos do gênero jamaicano.
Ele verteu com sucesso a música de Bob Marley para o francês
("La Guerre", faixa do disco
"Dieu", de 94) e está sempre
perseguindo novas sonoridades.
O último lançamento do cantor, "Grand Bassam Zion
Rock", por exemplo, foi produzido pelo magistral baixista Dennis Bovell, uma das lendas do
dub e que mixou o disco de estréia dos brasileiros d'O Rappa.
O mais importante na obra de
Alpha Blondy é que ele contribuiu com sucesso para a eterna
ponte aérea África-Jamaica.
Assim como os escravos que
baixaram no Caribe trouxeram
suas canções em forma de lamento (que se transformaram
em reggae séculos depois), os jamaicanos com certeza se deram
conta de que letras de conscientização ainda fazem parte da linguagem do reggae.
Não é à toa que, depois do crescimento do reggae africano e
seus dogmas de positividade,
muitos "reggaemen" jamaicanos se voltaram para as eternas
pregações de Bob Marley, Peter
Tosh e Bunny Wailer.
Sérgio Martins, 30, é editor da revista "Showbizz"
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