São Paulo, segunda, 26 de janeiro de 1998.



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Com fama de louco, 'superstar' marfinense mostra que o estilo pode ir além de Bob Marley
Alpha Blondy radicaliza o reggae

SÉRGIO MARTINS
especial para a Folha

Talvez para os brasileiros as letras de Bob Marley nunca tenham "batido" tanto quanto deveriam. Afinal, cultuar uma filosofia de vida ancestral (o rastafarianismo), acreditar que um rei africano seja a reencarnação de Jesus Cristo (o tirano etíope Hailé Selassié) e abominar o mundo civilizado, chamando-o de Babilônia, não caem muito bem para nós, os reis da desencanação.
Os africanos, porém, tomam as palavras de Marley como uma escritura sagrada.
Explorada por colonizadores, morando em guetos e vítima de um apartheid político e social, a população africana abraçou o reggae como uma bênção -e o gênero virou música subversiva para os políticos locais.
O sul-africano Lucky Dube teve suas canções proibidas pelo governo branco da África do Sul. Thomas Mapfumo cantou a libertação da Rodésia (atual Zimbábue), com seu ritmo chiamurenga, e Majek Fashek domina a população da Nigéria, com canções de protesto e uma capacidade (não provada cientificamente, é claro) de produzir chuvas.
Mas nenhum desses astros supera o "superstar" da Costa do Marfim, Alpha Blondy, em importância e criatividade.
Nascido em Dimbokoro sob o nome de Seydou Kone, o cantor passa longe do "reggae-carbono" executado por muitos admiradores de Bob Marley.
Adicionou guitarras e sopros típicos da música africana aos principais elementos do reggae (leia-se baixo e bateria estalando nos ouvidos e letras libertárias). Para ser melhor entendido, canta em inglês, francês e no dialeto marfinense dioula.
No início, o rock
O interessante é que Blondy iniciou sua carreira como uma estrela do rock. Ele fazia parte de uma banda de afro rock chamada Atomic Vibrations.
Só mudou de estilo depois de uma viagem à Jamaica, onde conheceu os hinos de Bob Marley e gravou alguns compactos -nenhum obteve sucesso. Em seguida, passou uma temporada em clínicas psiquiátricas devido ao abuso de LSD (que, dizem, ainda faz parte de sua vida).
Alpha só conheceu a fama a partir dos anos 80. Graças a álbuns clássicos como "Cocody Rock" (1984) e "Apartheid is Nazism" (1985), ele ganhou destaque na França, país que o trata como o legítimo sucessor de Bob Marley. O astro também é bastante respeitado no Brasil.
Ele se apresentou por aqui em 1994. Estava convocado para o festival Ruffles Reggae do ano passado, mas faltou (sim, aquele velho problema psiquiátrico).
Louco ou não, Alpha Blondy faz um "chacundum" da melhor qualidade. Álbuns como "Jerusalém" (87), gravado ao lado dos Wailers, estão entre os grandes clássicos do gênero jamaicano.
Ele verteu com sucesso a música de Bob Marley para o francês ("La Guerre", faixa do disco "Dieu", de 94) e está sempre perseguindo novas sonoridades.
O último lançamento do cantor, "Grand Bassam Zion Rock", por exemplo, foi produzido pelo magistral baixista Dennis Bovell, uma das lendas do dub e que mixou o disco de estréia dos brasileiros d'O Rappa.
O mais importante na obra de Alpha Blondy é que ele contribuiu com sucesso para a eterna ponte aérea África-Jamaica.
Assim como os escravos que baixaram no Caribe trouxeram suas canções em forma de lamento (que se transformaram em reggae séculos depois), os jamaicanos com certeza se deram conta de que letras de conscientização ainda fazem parte da linguagem do reggae.
Não é à toa que, depois do crescimento do reggae africano e seus dogmas de positividade, muitos "reggaemen" jamaicanos se voltaram para as eternas pregações de Bob Marley, Peter Tosh e Bunny Wailer.


Sérgio Martins, 30, é editor da revista "Showbizz"


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