São Paulo, segunda-feira, 26 de fevereiro de 2001

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FERNANDO GABEIRA

A caverna pré-histórica do Carandiru

Dessa vez, subi as escadas do pavilhão 9 no princípio da noite. No fundo do pátio, além de papéis, garrafas, escombros e móveis retorcidos, ardia uma grande fogueira. Por alguns segundos fixei-me nas chamas.
Lembrei-me da visita de 92, quando 111 foram massacrados. Tive medo de que esse complexo desaparecesse nas cinzas e, no futuro, ninguém se lembrasse mais da imensa caverna pré-histórica encravada na zona urbana de São Paulo.
Nas outras cidades, muitos pensam que o Carandiru fica longe de tudo. Não sabem que está próximo a uma estação de metrô, numa avenida movimentada.
Antes da demolição, deveria ser aberto ao público, algo que faltou em Ilha Grande, onde a penitenciária foi implodida. Recebi uma foto da implosão e a deixei por alguns anos na minha mesa.
Depois se perdeu e, quando visito os escombros, vejo apenas os urubus, as centenas de urubus que eram a vanguarda da vigilância no presídio.
Não há mais vestígios das cachorras dos presos, que foram soltas no mato e ainda hoje devem uivar de saudade dos seus donos, transferidos para outras cadeias. Viraram cachorras selvagens, torturadas pelas lembranças de afagos pretéritos, desintegrados na poeira da implosão.
O Carandiru deveria ficar de pé algum tempo para que se visitasse essa loucura brasileira, um complexo que abriga 10 mil presos.
Os arqueólogos poderiam examinar as celas, retirar vestígios, organizar as fotos de mulheres nuas, os pequenos fogareiros onde se tenta melhorar a comida com um molho de tomate, um refogado de cebola.
Há 200 anos, os quakers construíram uma penitenciária na Pensilvânia, acreditando que era possível moldar o comportamento humano. Derivado do conceito de penitência, a instituição era um monumento dedicado à recuperação dos pecadores por meio de trabalho pesado e reflexão sobre seus erros.
O romancista inglês Charles Dickens mencionou esse modelo ao visitar a Pensilvânia em 1840. Os que idealizaram o sistema, afirmou Dickens, e aqueles que o mantêm não sabem o que estão fazendo. "Passo os dias pensando nisso calmamente, sondando os mistérios mentais, piores do que qualquer tortura no corpo", conclui Dickens.
Se Charles Dickens fosse catapultado ao século 21, no coração da grande metrópole brasileira, aí então teria matéria de sobra para sondar os mistérios que levaram à construção desse complexo. Talvez até absolvesse os quakers da Pensilvânia, seduzidos pelo conceito de penitência.
Cada vez que entro num grande presídio brasileiro tenho a impressão de que vivemos numa prisão mental, da qual não podemos sair. Nossos companheiros de cela são os norte-americanos, que também acreditam na viabilidade de prender todo mundo que cometa um crime. Eles constroem uma prisão por semana e devem atravessar esse princípio de século erguendo furiosamente novas unidades carcerárias.
Nossa loucura é um pouco mais séria. Em São Paulo, entram mil novos presos no sistema por mês. Era preciso construir uma nova penitenciária todo mês e arcar com os custos de cada preso, cerca de cinco salários mínimos.
Daqui a pouco teremos grande parte da população presa ou tomando conta dos presos.
Como não há dinheiro para mantê-los com dignidade, eles vão se rebelar. E, como não há dinheiro para pagar decentemente os funcionários, eles podem se corromper.
A união de presos rebelados com funcionários corrompidos pode produzir novos pesadelos.
Bem fez o ministro da Justiça, José Gregori. No auge da crise penitenciária, partiu para Pernambuco para se dedicar ao periódico ato de terrorismo cultural: queimar plantações de maconha.
Resta desejar que as nuvens de fumaça cheguem às suas narinas virtuosas e ele subitamente desperte dessa calma loucura que embala as autoridades brasileiras. Sentadas num vulcão, observam placidamente a queima da Cannabis sativa no sertão pernambucano.
-Aquela nuvem de fumaça parece um elefante.
-Não. É um camelo, não está vendo que é um camelo?
Meu único consolo é que tudo é grandioso no Brasil. O Carandiru é uma estupidez monumental, a revolta dos presos é a maior do mundo e, considerando a perfomance do meu amigo José Gregori, vou indicar seu nome para que tenha um busto de cera no museu da cannabis em Amsterdã.
Com uma legenda apropriada, contando que foi queimar plantações de cannabis enquanto as prisões ainda eram sacudidas pela revolta, poderemos concluir: "Mucho loco, mano".



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