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FERNANDO GABEIRA
A caverna pré-histórica do Carandiru
Dessa vez, subi as escadas
do pavilhão 9 no princípio
da noite. No fundo do pátio, além
de papéis, garrafas, escombros e
móveis retorcidos, ardia uma
grande fogueira. Por alguns segundos fixei-me nas chamas.
Lembrei-me da visita de 92,
quando 111 foram massacrados.
Tive medo de que esse complexo
desaparecesse nas cinzas e, no futuro, ninguém se lembrasse mais
da imensa caverna pré-histórica
encravada na zona urbana de
São Paulo.
Nas outras cidades, muitos pensam que o Carandiru fica longe
de tudo. Não sabem que está próximo a uma estação de metrô,
numa avenida movimentada.
Antes da demolição, deveria ser
aberto ao público, algo que faltou
em Ilha Grande, onde a penitenciária foi implodida. Recebi uma
foto da implosão e a deixei por alguns anos na minha mesa.
Depois se perdeu e, quando visito os escombros, vejo apenas os
urubus, as centenas de urubus
que eram a vanguarda da vigilância no presídio.
Não há mais vestígios das cachorras dos presos, que foram soltas no mato e ainda hoje devem
uivar de saudade dos seus donos,
transferidos para outras cadeias.
Viraram cachorras selvagens, torturadas pelas lembranças de afagos pretéritos, desintegrados na
poeira da implosão.
O Carandiru deveria ficar de pé
algum tempo para que se visitasse
essa loucura brasileira, um complexo que abriga 10 mil presos.
Os arqueólogos poderiam examinar as celas, retirar vestígios,
organizar as fotos de mulheres
nuas, os pequenos fogareiros onde se tenta melhorar a comida
com um molho de tomate, um refogado de cebola.
Há 200 anos, os quakers construíram uma penitenciária na
Pensilvânia, acreditando que era
possível moldar o comportamento humano. Derivado do conceito
de penitência, a instituição era
um monumento dedicado à recuperação dos pecadores por meio
de trabalho pesado e reflexão sobre seus erros.
O romancista inglês Charles
Dickens mencionou esse modelo
ao visitar a Pensilvânia em 1840.
Os que idealizaram o sistema,
afirmou Dickens, e aqueles que o
mantêm não sabem o que estão
fazendo. "Passo os dias pensando
nisso calmamente, sondando os
mistérios mentais, piores do que
qualquer tortura no corpo", conclui Dickens.
Se Charles Dickens fosse catapultado ao século 21, no coração
da grande metrópole brasileira,
aí então teria matéria de sobra
para sondar os mistérios que levaram à construção desse complexo. Talvez até absolvesse os
quakers da Pensilvânia, seduzidos pelo conceito de penitência.
Cada vez que entro num grande
presídio brasileiro tenho a impressão de que vivemos numa prisão mental, da qual não podemos
sair. Nossos companheiros de cela
são os norte-americanos, que
também acreditam na viabilidade de prender todo mundo que
cometa um crime. Eles constroem
uma prisão por semana e devem
atravessar esse princípio de século
erguendo furiosamente novas
unidades carcerárias.
Nossa loucura é um pouco mais
séria. Em São Paulo, entram mil
novos presos no sistema por mês.
Era preciso construir uma nova
penitenciária todo mês e arcar
com os custos de cada preso, cerca
de cinco salários mínimos.
Daqui a pouco teremos grande
parte da população presa ou tomando conta dos presos.
Como não há dinheiro para
mantê-los com dignidade, eles
vão se rebelar. E, como não há dinheiro para pagar decentemente
os funcionários, eles podem se
corromper.
A união de presos rebelados
com funcionários corrompidos
pode produzir novos pesadelos.
Bem fez o ministro da Justiça,
José Gregori. No auge da crise penitenciária, partiu para Pernambuco para se dedicar ao periódico
ato de terrorismo cultural: queimar plantações de maconha.
Resta desejar que as nuvens de
fumaça cheguem às suas narinas
virtuosas e ele subitamente desperte dessa calma loucura que
embala as autoridades brasileiras. Sentadas num vulcão, observam placidamente a queima da
Cannabis sativa no sertão pernambucano.
-Aquela nuvem de fumaça
parece um elefante.
-Não. É um camelo, não está
vendo que é um camelo?
Meu único consolo é que tudo é
grandioso no Brasil. O Carandiru
é uma estupidez monumental, a
revolta dos presos é a maior do
mundo e, considerando a perfomance do meu amigo José Gregori, vou indicar seu nome para que
tenha um busto de cera no museu
da cannabis em Amsterdã.
Com uma legenda apropriada,
contando que foi queimar plantações de cannabis enquanto as prisões ainda eram sacudidas pela
revolta, poderemos concluir:
"Mucho loco, mano".
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