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FERNANDO GABEIRA
Algumas maneiras de ser antropófago
Sempre que volto ao Brasil,
venho com uma enorme sede
de trabalho, querendo reorientar
pesquisas, realizar novos debates,
planejar o ano que entra, alcançar um mínimo de ordem mental.
Mas, sempre que volto, também
os "pepinos" se sucedem e me rendo aos eventos inesperados.
Dessa vez o que desequilibrou
os planos foi a demissão da apresentadora Sonia Francine da TV
Cultura, que me afastou um pouco das áreas onde concentrava a
atenção: o choque das identidades no mundo moderno, o islã dilacerado pelos atentados de setembro, a mestiçagem cultural
brasileira como um ponto que pode ser de interesse para o debate
planetário.
Vinha lendo um sereno livro de
bolso no avião. O autor é Amin
Mallouf, que é libanês e francês e,
quando diz isso às pessoas, sempre lhe perguntam: "Mas no fundo, o que é que você é mesmo?".
Como se houvesse um fundo.
Vinha também pensando em
reler o manifesto antropofágico
lançado no contexto da Semana
de Arte Moderna, em 22. Tornou-se um documento cult entre alguns antropólogos culturais, mas
creio que é a partir dele que se pode definir um pouco melhor nossa
inserção no mundo globalizado,
que multiplicou as trocas e os encontros.
Um ponto de partida essencial é
reconhecer que a antropofagia
entre os tupinambás não era basicamente uma questão de proteínas. Era um ritual em que se incorporavam as qualidades do adversário.
Mas é preciso também reconhecer alguns perigos. Um deles é o de
comer elementos esparsos de outras culturas, retirando-os do
contexto. Isso não altera nossa estabilidade simbólica. Come-se
aqui e ali, para ficar o mesmo.
Sinto que de uma certa forma a
cultura comercial que domina o
processo de globalização faz exatamente isso: comer, retirando do
contexto, sem alterar sua estabilidade simbólica.
Por isso talvez a idéia da mestiçagem cultural possa ser uma revisão do antropofagismo, embora
essa palavra, por ter entrado na
moda, esteja sujeita a inúmeras
utilizações, a maioria delas superficial.
No meio desse tumulto em busca de um mínimo de forma, explode essa história da apresentadora demitida porque admitiu
fumar maconha. E fico pensando,
com o meu livrinho de bolso,
quantas vezes nos equivocamos
sobre o islã. Damos a impressão
de que o cristianismo sempre foi o
território das luzes e de que o islã
sempre resistiu à abertura, quando, no princípio, a verdade era o
oposto.
Mesmo hoje as correntes mais
modernas do islã, como as representadas por Tariq Ramadan,
um teólogo que vive na Suíça, fazem uma distinção clara entre a
sharia, conjunto de regras que
orientam a vida pessoal, e a tolerância e abertura na vida social,
com muitas culturas e religiões.
Em nossas leis ocidentais brasileiras há muito de sharia, porque
elas querem regular o uso do próprio corpo, numa esfera social
que transcende as opções religiosas. Em outras palavras: há um
elo nítido entre o destino de Soninha e o das mulheres de Cabul.
Reencontrei o fio da meada e
pude absorver o inesperado no
fluxo dos planos de volta, do trabalho que nos espera em 2002. E
comprovei as teses de Mallouf sobre a precariedade de identidades
rígidas, Ocidente e Oriente se confundem, torna-se débil a fronteira
entre "eles" e "nós".
Espero desenvolver essa conversa ao longo de 2002, dependendo,
é claro, do inesperado que está
sempre derrubando os mais longos planos.
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