São Paulo, segunda-feira, 26 de novembro de 2001

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FERNANDO GABEIRA

Algumas maneiras de ser antropófago

Sempre que volto ao Brasil, venho com uma enorme sede de trabalho, querendo reorientar pesquisas, realizar novos debates, planejar o ano que entra, alcançar um mínimo de ordem mental. Mas, sempre que volto, também os "pepinos" se sucedem e me rendo aos eventos inesperados.
Dessa vez o que desequilibrou os planos foi a demissão da apresentadora Sonia Francine da TV Cultura, que me afastou um pouco das áreas onde concentrava a atenção: o choque das identidades no mundo moderno, o islã dilacerado pelos atentados de setembro, a mestiçagem cultural brasileira como um ponto que pode ser de interesse para o debate planetário.
Vinha lendo um sereno livro de bolso no avião. O autor é Amin Mallouf, que é libanês e francês e, quando diz isso às pessoas, sempre lhe perguntam: "Mas no fundo, o que é que você é mesmo?". Como se houvesse um fundo.
Vinha também pensando em reler o manifesto antropofágico lançado no contexto da Semana de Arte Moderna, em 22. Tornou-se um documento cult entre alguns antropólogos culturais, mas creio que é a partir dele que se pode definir um pouco melhor nossa inserção no mundo globalizado, que multiplicou as trocas e os encontros.
Um ponto de partida essencial é reconhecer que a antropofagia entre os tupinambás não era basicamente uma questão de proteínas. Era um ritual em que se incorporavam as qualidades do adversário.
Mas é preciso também reconhecer alguns perigos. Um deles é o de comer elementos esparsos de outras culturas, retirando-os do contexto. Isso não altera nossa estabilidade simbólica. Come-se aqui e ali, para ficar o mesmo.
Sinto que de uma certa forma a cultura comercial que domina o processo de globalização faz exatamente isso: comer, retirando do contexto, sem alterar sua estabilidade simbólica.
Por isso talvez a idéia da mestiçagem cultural possa ser uma revisão do antropofagismo, embora essa palavra, por ter entrado na moda, esteja sujeita a inúmeras utilizações, a maioria delas superficial.
No meio desse tumulto em busca de um mínimo de forma, explode essa história da apresentadora demitida porque admitiu fumar maconha. E fico pensando, com o meu livrinho de bolso, quantas vezes nos equivocamos sobre o islã. Damos a impressão de que o cristianismo sempre foi o território das luzes e de que o islã sempre resistiu à abertura, quando, no princípio, a verdade era o oposto.
Mesmo hoje as correntes mais modernas do islã, como as representadas por Tariq Ramadan, um teólogo que vive na Suíça, fazem uma distinção clara entre a sharia, conjunto de regras que orientam a vida pessoal, e a tolerância e abertura na vida social, com muitas culturas e religiões.
Em nossas leis ocidentais brasileiras há muito de sharia, porque elas querem regular o uso do próprio corpo, numa esfera social que transcende as opções religiosas. Em outras palavras: há um elo nítido entre o destino de Soninha e o das mulheres de Cabul.
Reencontrei o fio da meada e pude absorver o inesperado no fluxo dos planos de volta, do trabalho que nos espera em 2002. E comprovei as teses de Mallouf sobre a precariedade de identidades rígidas, Ocidente e Oriente se confundem, torna-se débil a fronteira entre "eles" e "nós".
Espero desenvolver essa conversa ao longo de 2002, dependendo, é claro, do inesperado que está sempre derrubando os mais longos planos.




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