São Paulo, quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

VENEZA EM LETRAS

Caipirinha a R$ 42 reflete supremacia de turistas

Mapa labiríntico e especulação de como seria excepcional morar na cidade deixa turista mais lerdo

DO ENVIADO ESPECIAL A VENEZA

O jornalista norte-americano Ambrose Bierce (1842-?) riu dos que se locomoviam sonhando "resolver na cidade "b" os problemas que têm na "a'". Mas pode ser justamente essa a primeira impressão do turista que chega a Veneza: achar que, uma vez estabelecido por lá, problemas nunca mais.
Após esperar inutilmente pelo vaporetto em duas estações (depois do entardecer, o barco tem o intervalo mudado em alguns pontos e deixa de passar em outros), o repórter caminhou da piazza San Marco até o terminal de ônibus, no extremo oposto da cidade, na sua conexão terrestre com o mundo.
Em linha reta ou quase, tomaria meia hora; em Veneza, toma mais de uma hora. Não só porque o mapa é um labirinto, com ruelas terminando em paredes, mas porque aquela cisma deixa o turista mais lerdo.
Como disse o arquiteto franco-suíco Le Corbusier (1887-1965), lá o pedestre é dono do território. Moto, carro, caminhão, nada disso existe. Nem bicicletas ou patins são vistos. Nem mesmo, como em Morro de São Paulo (BA), carrinhos de mão servindo como táxi para transportar malas ou crianças.

Sim, mas...
Então junto as trouxas, hipoteco as coisas, mudo para lá e jogo os problemas na laguna?
O garçom de um restaurante próximo da piazza San Marco acaba de fazer o contrário: pagava 900 (R$ 2.379) para alugar uma peça única, e agora paga, em Mestre, cidade próxima dali, 600 (R$ 1.584) por um apartamento de dois quartos.
Incomodam os venezianos a "acqua alta", a maré alta que faz soar alarmes e causa prejuízos; os pombos, que já são cerca de 40 mil no centro histórico, um dos poucos locais onde ainda é permitido dar comida a eles; os 18 vendedores de comida aos pombos ali na piazza San Marco, que alimentam essa diversão clichê dos turistas.
Turistas. Turismo em massa. Eis o que não incomoda, e sim enerva os venezianos. Na falta de carros, o morador local é atropelado por uma horda que, como protesta a escritora Donna Leon, admira mais as vitrines que expõem bugigangas turísticas do que a cidade em si.
Enervam os venezianos os efeitos desse turismo em massa, como caipirinhas a 16 (R$ 42) no Caffé Florian (www.caffeflorian.com), o primeiro café europeu, de 1720. Ainda mais famoso, o Harry's Bar, próximo dali, não cobra menos.
Por isso, o garçom não está sozinho na sua debandada: desde a década de 1960, a população da cidade caiu quase pela metade, de 121 mil para 62 mil habitantes. Colaborou para isso a inundação de 1966, que atingiu quase dois metros de altura e destruiu 16 mil casas, mas também a inundação cada vez maior de visitantes (na alta temporada, são 500 mil por dia), que, ao encarecer a vida local, estimula a fuga de mais de mil moradores por ano.
Por tudo isso a Veneza que o repórter encontrou às 20h, de nativos reunidos em uma praça silenciosa conversando sobre nada e jogando bola enquanto o sol sumia, é apenas parte da realidade. É a que ilude o viajante e o torna alvo da piada de Ambrose Bierce. (TM)


Texto Anterior: Onde ver as obras
Próximo Texto: Frase
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.