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VENEZA EM LETRAS
Caipirinha a R$ 42 reflete supremacia de turistas
Mapa labiríntico e especulação de como seria excepcional morar na cidade deixa turista mais lerdo
DO ENVIADO ESPECIAL A VENEZA
O jornalista norte-americano Ambrose Bierce (1842-?) riu
dos que se locomoviam sonhando "resolver na cidade "b"
os problemas que têm na "a'".
Mas pode ser justamente essa a
primeira impressão do turista
que chega a Veneza: achar que,
uma vez estabelecido por lá,
problemas nunca mais.
Após esperar inutilmente pelo vaporetto em duas estações
(depois do entardecer, o barco
tem o intervalo mudado em alguns pontos e deixa de passar
em outros), o repórter caminhou da piazza San Marco até o
terminal de ônibus, no extremo
oposto da cidade, na sua conexão terrestre com o mundo.
Em linha reta ou quase, tomaria meia hora; em Veneza,
toma mais de uma hora. Não só
porque o mapa é um labirinto,
com ruelas terminando em paredes, mas porque aquela cisma deixa o turista mais lerdo.
Como disse o arquiteto franco-suíco Le Corbusier (1887-1965), lá o pedestre é dono do
território. Moto, carro, caminhão, nada disso existe. Nem
bicicletas ou patins são vistos.
Nem mesmo, como em Morro
de São Paulo (BA), carrinhos de
mão servindo como táxi para
transportar malas ou crianças.
Sim, mas...
Então junto as trouxas, hipoteco as coisas, mudo para lá e
jogo os problemas na laguna?
O garçom de um restaurante
próximo da piazza San Marco
acaba de fazer o contrário: pagava 900 (R$ 2.379) para alugar uma peça única, e agora paga, em Mestre, cidade próxima
dali, 600 (R$ 1.584) por um
apartamento de dois quartos.
Incomodam os venezianos a
"acqua alta", a maré alta que
faz soar alarmes e causa prejuízos; os pombos, que já são cerca
de 40 mil no centro histórico,
um dos poucos locais onde ainda é permitido dar comida a
eles; os 18 vendedores de comida aos pombos ali na piazza
San Marco, que alimentam essa diversão clichê dos turistas.
Turistas. Turismo em massa.
Eis o que não incomoda, e sim
enerva os venezianos. Na falta
de carros, o morador local é
atropelado por uma horda que,
como protesta a escritora Donna Leon, admira mais as vitrines que expõem bugigangas turísticas do que a cidade em si.
Enervam os venezianos os
efeitos desse turismo em massa, como caipirinhas a 16 (R$
42) no Caffé Florian (www.caffeflorian.com), o primeiro
café europeu, de 1720. Ainda
mais famoso, o Harry's Bar,
próximo dali, não cobra menos.
Por isso, o garçom não está
sozinho na sua debandada: desde a década de 1960, a população da cidade caiu quase pela
metade, de 121 mil para 62 mil
habitantes. Colaborou para isso a inundação de 1966, que
atingiu quase dois metros de
altura e destruiu 16 mil casas,
mas também a inundação cada
vez maior de visitantes (na alta
temporada, são 500 mil por
dia), que, ao encarecer a vida
local, estimula a fuga de mais
de mil moradores por ano.
Por tudo isso a Veneza que o
repórter encontrou às 20h, de
nativos reunidos em uma praça
silenciosa conversando sobre
nada e jogando bola enquanto
o sol sumia, é apenas parte da
realidade. É a que ilude o viajante e o torna alvo da piada de
Ambrose Bierce.
(TM)
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