São Paulo, segunda-feira, 29 de julho de 2002

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FERNANDO GABEIRA

Sivam, a guerra americana na Amazônia

Começou a funcionar na Amazônia um dos mais ambiciosos projetos de monitoramento eletrônico do mundo, o Sivam. Esse projeto tem sido uma pedra no meu sapato. No princípio, lutei contra ele, denunciando a Raytheon e a empresa brasileira responsável pela integração do projeto. A brasileira foi para o espaço e, com a ajuda dos militares, foi criada outra, para cumprir sua função.
Passado o período de denúncias, fui conhecer o Sivam na própria Amazônia. Fiquei entusiasmado com suas possibilidades. Poderia fornecer dados para políticas públicas e monitorar o ambiente, e seus supercomputadores tinham um potencial muito maior do que o uso que lhes era previsto. Pensei em usá-los para codificar todos os idiomas falados na Amazônia, o que seria algo culturalmente maravilhoso para o Brasil e para a humanidade.
Bem-me-quer, malmequer. Com o lançamento do Sivam e as denúncias sobre as relações secretas de seus organizadores com a diplomacia norte-americana, creio ter compreendido a verdadeira dimensão do projeto.
Estou arrependido de ter atenuado a oposição a ele, mas continuo esperançoso de que no futuro o sistema possa vir a ser usado para o bem do Brasil e dos países do Pacto Amazônico.
Moderadamente esperançoso. A vitória norte-americana foi esmagadora. Conseguiram nos vender equipamentos por US$ 1,4 bilhão, dinheiro pesado para um país como o nosso, cheio de problemas sociais. Obtiveram o compromisso de que as informações seriam passadas para eles. Pelo menos é isso que consta nos documentos oficiais em Washington.
O êxito americano contra os que defendem os interesses do Brasil não pára por aí.
Conseguiram o compromisso de que os brasileiros empreguem os aviões, comprados com nosso dinheiro, para proteger os narizes dos seus consumidores de cocaína. Nossa tarefa: deter a cocaína produzida na Colômbia e exportada para os EUA.
Se a história parasse aí, diríamos apenas, como nos anos 50, que alguns vendilhões nos traíram, comprando com nosso dinheiro um equipamento norte-americano que vai servir muito mais aos interesses do próprio povo norte-americano.
Mas o Sivam representa também a abertura para a Lei do Abate, aprovada no Congresso e em suspenso nos Estados Unidos, onde foi imaginada. Essa lei consiste em derrubar aviões que não atendam às ordens de aterrissar.
No Peru provocou inúmeros incidentes. O último foi a morte da missionária americana Veronica Bowlers e de sua filha Charity, que viajavam num pequeno avião bombardeado pela Força Aérea peruana.
Essa vitória americana não se resume em obter informações nem em direcionar o Sivam para seus interesses próprios. Essa vitória é sobre a civilização brasileira, pois introduz a pena de morte por caminhos "infraconstitucionais".
O Brasil, que deveria estar na vanguarda mundial pela abolição, acaba aceitando introduzir a pena capital de uma forma ainda mais bárbara do que os outros. Aqui não haverá julgamento e não se executará apenas o piloto, mas todos que estiverem a bordo.
Nessa derrota da civilização brasileira, não há como pedir ajuda à esquerda, pois ela defendeu a medida no Parlamento. Só alguns juristas esparsos, militantes dos direitos humanos, se deram conta do processo.
O que fazer quando, através dos chamados defensores da soberania amazônica, os norte-americanos impõem essa tragédia ao Brasil, trazendo para cá os seus planos de guerra? Prioritariamente voltado para combater o narcotráfico, dotado da possibilidade de abater aviões suspeitos ou apenas incapazes de ouvir seus avisos, o Sivam será na verdade uma extensão do Plano Colômbia, com a diferença de que, lá, quem financia são os americanos; aqui, somos nós.
Com todo o respeito pelo presidente, pelos militares com quem convivi no projeto Sivam e também pela esquerda, que não chega a processar todos os dados desse imbróglio, em alguns lugares isso daria cadeia.
Como não estamos nesses lugares, possivelmente quem vai para a cadeia sou eu. E até que não iria muito triste, pois, em certas ocasiões, em certas conjunturas, a cadeia costuma ser o único lugar do país onde se pode respirar um pouco de decência.


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