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FERNANDO GABEIRA
Sivam, a guerra americana na Amazônia
Começou a funcionar na
Amazônia um dos mais ambiciosos projetos de monitoramento eletrônico do mundo, o Sivam. Esse projeto tem sido uma
pedra no meu sapato. No princípio, lutei contra ele, denunciando
a Raytheon e a empresa brasileira
responsável pela integração do
projeto. A brasileira foi para o espaço e, com a ajuda dos militares,
foi criada outra, para cumprir
sua função.
Passado o período de denúncias, fui conhecer o Sivam na própria Amazônia. Fiquei entusiasmado com suas possibilidades.
Poderia fornecer dados para políticas públicas e monitorar o ambiente, e seus supercomputadores
tinham um potencial muito
maior do que o uso que lhes era
previsto. Pensei em usá-los para
codificar todos os idiomas falados
na Amazônia, o que seria algo
culturalmente maravilhoso para
o Brasil e para a humanidade.
Bem-me-quer, malmequer.
Com o lançamento do Sivam e as
denúncias sobre as relações secretas de seus organizadores com a
diplomacia norte-americana,
creio ter compreendido a verdadeira dimensão do projeto.
Estou arrependido de ter atenuado a oposição a ele, mas continuo esperançoso de que no futuro o sistema possa vir a ser usado
para o bem do Brasil e dos países
do Pacto Amazônico.
Moderadamente esperançoso.
A vitória norte-americana foi esmagadora. Conseguiram nos
vender equipamentos por US$ 1,4
bilhão, dinheiro pesado para um
país como o nosso, cheio de problemas sociais. Obtiveram o compromisso de que as informações
seriam passadas para eles. Pelo
menos é isso que consta nos documentos oficiais em Washington.
O êxito americano contra os
que defendem os interesses do
Brasil não pára por aí.
Conseguiram o compromisso de
que os brasileiros empreguem os
aviões, comprados com nosso dinheiro, para proteger os narizes
dos seus consumidores de cocaína. Nossa tarefa: deter a cocaína
produzida na Colômbia e exportada para os EUA.
Se a história parasse aí, diríamos apenas, como nos anos 50,
que alguns vendilhões nos traíram, comprando com nosso dinheiro um equipamento norte-americano que vai servir muito
mais aos interesses do próprio povo norte-americano.
Mas o Sivam representa também a abertura para a Lei do
Abate, aprovada no Congresso e
em suspenso nos Estados Unidos,
onde foi imaginada. Essa lei consiste em derrubar aviões que não
atendam às ordens de aterrissar.
No Peru provocou inúmeros incidentes. O último foi a morte da
missionária americana Veronica
Bowlers e de sua filha Charity,
que viajavam num pequeno
avião bombardeado pela Força
Aérea peruana.
Essa vitória americana não se
resume em obter informações
nem em direcionar o Sivam para
seus interesses próprios. Essa vitória é sobre a civilização brasileira,
pois introduz a pena de morte por
caminhos "infraconstitucionais".
O Brasil, que deveria estar na
vanguarda mundial pela abolição, acaba aceitando introduzir a
pena capital de uma forma ainda
mais bárbara do que os outros.
Aqui não haverá julgamento e
não se executará apenas o piloto,
mas todos que estiverem a bordo.
Nessa derrota da civilização
brasileira, não há como pedir ajuda à esquerda, pois ela defendeu a
medida no Parlamento. Só alguns
juristas esparsos, militantes dos
direitos humanos, se deram conta
do processo.
O que fazer quando, através dos
chamados defensores da soberania amazônica, os norte-americanos impõem essa tragédia ao
Brasil, trazendo para cá os seus
planos de guerra? Prioritariamente voltado para combater o
narcotráfico, dotado da possibilidade de abater aviões suspeitos
ou apenas incapazes de ouvir seus
avisos, o Sivam será na verdade
uma extensão do Plano Colômbia, com a diferença de que, lá,
quem financia são os americanos;
aqui, somos nós.
Com todo o respeito pelo presidente, pelos militares com quem
convivi no projeto Sivam e também pela esquerda, que não chega a processar todos os dados desse imbróglio, em alguns lugares
isso daria cadeia.
Como não estamos nesses lugares, possivelmente quem vai para
a cadeia sou eu. E até que não iria
muito triste, pois, em certas ocasiões, em certas conjunturas, a cadeia costuma ser o único lugar do
país onde se pode respirar um
pouco de decência.
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